Desde muito cedo
eu te conheço, mas não por nome. Desde muito pequena, quando eu ficava olhando
fixamente para uma parede branca perdida em meio a desenhos que minha mente
projetava a partir de um buraquinho no concreto, com o intuito de adiar alguma
tarefa solicitada pela minha mãe, ou quando insistia em jogar videogame quando
deveria estar fazendo o dever de casa. Você está na minha vida há muito tempo
e, aparentemente, não sairá dela tão fácil. Lembra de todas as vezes que a
letargia tomou conta do meu corpo, se alastrou pela minha alma me dando a
sensação de preguiça e inutilidade? Culpa sua, que tem o dom único de me fazer
sentir bem por longos períodos mas cair abruptamente num poço de arrependimento
e ressaca moral logo depois. Nossa relação é viciante, porém nada saudável.
Às vezes eu
finjo ser uma adulta capaz de assumir o controle da própria vida, finjo anotar
os compromissos na minha agenda mental, prometo que as tarefas da faculdade
serão feitas logo no início do fim de semana. Às vezes acordo e penso: chega!
Vou dar um fim nessa relação que tanto me consome. Mas logo sou surpreendida
por você que me seduz com um fim de semana ensolarado, com um passeio
inesperado, com um texto do Duvivier ou os primeiros episódios de
F.R.I.E.N.D.S, de modo que, aquela mulher obstinada e responsável do início dá
lugar a uma garota inútil e irresponsável, que adia o que deveria ser
inadiável.
Você me tem nas
mãos. Parece que fica arquitetando formas de me dispersar, me tirar de órbita e
me jogar na mais profunda inércia – e o faz, sem prévio aviso. Como
consequência, muitas vezes arrisco-me a
dormir tarde fazendo absolutamente nada, acordo morta no outro dia e sou
surpreendida pela retomada das atividades normais do meu cérebro, que
subitamente sai do estado de submissão e me lembra de todas as tarefas
atrasadas ou em cima da hora que terei que encarar, sem fazer cara feia. Você
sempre consegue o que quer, e eu sempre me rendo aos seus galanteios.
Percebi que não
sou a única na sua vida. Notei que você flerta com muitos dos meus amigos. Uns
conseguem ser mais fortes do que eu e às vezes te mandam embora, mesmo que
temporariamente; outros te amam incondicionalmente e já estão conformados com
essa relação confortável. Porém, a grande maioria concorda que a longo prazo
você acabará se tornando um atraso de vida. E é exatamente isso o que você
quer: atrasar a vida alheia e reafirmar o seu poder sobre esse bicho ininteligível
e facilmente manipulável que é o ser humano.
Tenho plena
consciência que o nosso relacionamento precisa acabar o quanto antes, a fim de
que eu possa regularizar a minha vida, tomar as rédeas da situação, respirar aliviada.
Mas enquanto escrevo este texto eu checo o Whatsapp, vou ao banheiro, arrumo o
cabelo, sirvo mais um chimarrão e me distraio com os pôsteres na parede. De
repente, me pego num abismo chamado Wikipédia e vou de Hitchcock a Beach boys em
menos de dez minutos. Sinto a sua presença em cada passo que dou, em cada ação
que eu executo, por mais simples que seja. Mas acabou - pelo menos até sair outro texto do Duvivier
na Folha ou eu for contemplada com um fim de semana ensolarado e convidativo.
Céu limpo e sol para sábado, segundo a previsão que acabo de ler.