quarta-feira, 4 de março de 2015

Carta aberta à procrastinação




Desde muito cedo eu te conheço, mas não por nome. Desde muito pequena, quando eu ficava olhando fixamente para uma parede branca perdida em meio a desenhos que minha mente projetava a partir de um buraquinho no concreto, com o intuito de adiar alguma tarefa solicitada pela minha mãe, ou quando insistia em jogar videogame quando deveria estar fazendo o dever de casa. Você está na minha vida há muito tempo e, aparentemente, não sairá dela tão fácil. Lembra de todas as vezes que a letargia tomou conta do meu corpo, se alastrou pela minha alma me dando a sensação de preguiça e inutilidade? Culpa sua, que tem o dom único de me fazer sentir bem por longos períodos mas cair abruptamente num poço de arrependimento e ressaca moral logo depois. Nossa relação é viciante, porém nada saudável.

Às vezes eu finjo ser uma adulta capaz de assumir o controle da própria vida, finjo anotar os compromissos na minha agenda mental, prometo que as tarefas da faculdade serão feitas logo no início do fim de semana. Às vezes acordo e penso: chega! Vou dar um fim nessa relação que tanto me consome. Mas logo sou surpreendida por você que me seduz com um fim de semana ensolarado, com um passeio inesperado, com um texto do Duvivier ou os primeiros episódios de F.R.I.E.N.D.S, de modo que, aquela mulher obstinada e responsável do início dá lugar a uma garota inútil e irresponsável, que adia o que deveria ser inadiável.

Você me tem nas mãos. Parece que fica arquitetando formas de me dispersar, me tirar de órbita e me jogar na mais profunda inércia – e o faz, sem prévio aviso. Como consequência, muitas vezes  arrisco-me a dormir tarde fazendo absolutamente nada, acordo morta no outro dia e sou surpreendida pela retomada das atividades normais do meu cérebro, que subitamente sai do estado de submissão e me lembra de todas as tarefas atrasadas ou em cima da hora que terei que encarar, sem fazer cara feia. Você sempre consegue o que quer, e eu sempre me rendo aos seus galanteios.

Percebi que não sou a única na sua vida. Notei que você flerta com muitos dos meus amigos. Uns conseguem ser mais fortes do que eu e às vezes te mandam embora, mesmo que temporariamente; outros te amam incondicionalmente e já estão conformados com essa relação confortável. Porém, a grande maioria concorda que a longo prazo você acabará se tornando um atraso de vida. E é exatamente isso o que você quer: atrasar a vida alheia e reafirmar o seu poder sobre esse bicho ininteligível e facilmente manipulável que é o ser humano.

Tenho plena consciência que o nosso relacionamento precisa acabar o quanto antes, a fim de que eu possa regularizar a minha vida, tomar as rédeas da situação, respirar aliviada. Mas enquanto escrevo este texto eu checo o Whatsapp, vou ao banheiro, arrumo o cabelo, sirvo mais um chimarrão e me distraio com os pôsteres na parede. De repente, me pego num abismo chamado Wikipédia e vou de Hitchcock a Beach boys em menos de dez minutos. Sinto a sua presença em cada passo que dou, em cada ação que eu executo, por mais simples que seja. Mas acabou -  pelo menos até sair outro texto do Duvivier na Folha ou eu for contemplada com um fim de semana ensolarado e convidativo. Céu limpo e sol para sábado, segundo a previsão que acabo de ler. 


segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

É impossível ser feliz sozinho?

       


        Há quem só consiga ser feliz quando tem alguém para fazer planos de juntar as escovas de dente. Há quem sinta um desconforto inexplicável em fazer uma caminhada,  ir ao teatro ou até mesmo frequentar a academia desacompanhada. Há quem sinta uma dor descomunal - beirando à enfermidade - ao se pegar sozinha no fim de semana à noite, de pijamas e sem planos de bebedeiras épicas. Todo mundo espera alguma coisa de um sábado à noite, menos dormir antes das dez.
Há quem não suporte a ideia de fazer uma viagem sozinha, porque para a maioria dessas pessoas, felicidade é um combo que inclui muitos amigos e companhias inseparáveis - e um álbum de viagem com várias selfies de um rosto só é de muito mal gosto.

          Há quem sinta muito medo de envelhecer; não pelo aparecimento das inevitáveis rugas ou pela possível perda gradativa de memória, mas pela solidão que, muitas vezes, bate à porta de mãos dadas com todos os sinais que evidenciam que estamos mais perto do fim.
Há quem não consiga decidir que calça comprar se não tiver a opinião da mãe, do amigo ou de quem quer que seja. Há quem não veja motivos para abrir uma garrafa de cerveja e celebrar a vida se não estiver na presença da torcida do Flamengo inteira - com muita risada e música estourando os tímpanos, de preferência.

        Em 1967 o mestre Tom Jobim compunha a música "Wave" ou "Vou te contar". O sucesso foi interpretado por diversos artistas de renome, entre eles Elis Regina e Frank Sinatra. A música é linda, de uma leveza e poesia inenarrável (como todas as composições do Tom) e chama atenção para um trecho, em especial: "Fundamental é mesmo o amor/ é impossível ser feliz sozinho". Concordo que o amor seja fundamental e acredito que esse sentimento é o combustível essencial das nossas vidas. 

        Mais essencial que o amor em sua forma genérica, é o nosso amor-próprio, que está intimamente ligado ao prazer em estarmos na nossa própria companhia, e ponto. A dependência irrefreável de estar rodeado de pessoas o tempo todo pode ser tão perigoso quanto qualquer outra droga psicotrópica: a abstinência de gente pode levar à tristeza profunda e à banalização do viver. Contudo, o tratamento é simples e não tem contra-indicações: aceitar os pequenos momentos em que estamos completamente solitários e desfrutá-los com o mesmo prazer que desfrutaríamos de um almoço de domingo com a casa cheia. Importante lembrar que a palavra solidão tem interpretações ambíguas, podendo significar estar só dentro de um espaço físico ou sentindo-se com a alma solitária em meio a uma multidão.  Solidão nada tem a ver com a falta de pessoas ao nosso redor, e sim com um estado de espírito. 

     Não há nada de errado em gostar da muvuca, da algazarra, dos oito primos correndo pela casa em meio à repreensão da mãe, das quatrocentas pessoas se espremendo numa casa noturna onde cabe menos da metade ou da companhia de todos os seus amigos do facebook, juntos. É importante e saudável conviver com outras pessoas, se relacionar, sentir o calor humano; entretanto, não podemos fazer disso uma regra, pois só temos a perder, afinal, não sentir prazer na nossa própria companhia é uma afronta contra nossas próprias qualidades e virtudes. 

     O mestre Tom que me desculpe a audácia de lhe contrariar, mas é possível sim - e necessário - ser feliz sozinho. 



sábado, 10 de janeiro de 2015

Vox Populi


        Sempre me autoeduquei de forma a não dar importância à opinião alheia. Repetia um mantra já bem batidinho: "ninguém paga minhas contas, ninguém paga minhas contas, ninguém paga minhas contas". Pois bem. Meus pais pagaram as minhas contas durante muito tempo, e eu sentia um misto de gratidão e obrigação com relação a isso. Sempre dei satisfação da minha vida à ambos, porém nunca escondi minha personalidade forte, minhas vontades e desejos. Nunca tive papas na língua para discordar deles e expor meu ponto de vista. Há cinco anos não dependo mais de ajuda financeira deles, e por incrível que pareça, meus pais nunca foram os alvos do meu comportamento policiado, dos meus movimentos friamente calculados, da minha personalidade mascarada politicamente correta tentando aderir - forçadamente - à moral e aos bons costumes estabelecidos pela nossa sociedade hipócrita.
        Meu método de autoeducação às vezes falha, e eis que surge o "pensar duas vezes antes de falar", o "será que se eu sair só com homens vão dizer alguma coisa" ou o "ele nem é tão interessante e malhado, o que será que minhas amigas vão dizer?". Essa sociedade julgadora, composta basicamente pelos parentes, amigos, colegas, vizinhos e em alguns casos, pelos pais do namorado é silenciosa, porém cruel. Sua vida vira uma espécie de vitrine onde suas atitudes são expostas, criticadas, mal-faladas. As redes sociais são a prova viva disso. Se for mulher, experimente postar uma foto bebendo, no facebook. Você será tachada de piranha, fácil, bêbada. baladeira. Se for homem, experimente postar uma música da Lady Gaga. Logo, você é afeminado, homossexual, enrustido, ou apenas quer aparecer - isso também serve no caso em que a mulher posta uma foto bebendo.
         Para provar que sua família te deu uma bela educação, você evita falar sobre sua posição política com seus parentes que defendem o impeachment da presidenta e utilizam o velho jargão "bandido bom é bandido morto". Evita discutir sobre religião, porque o fato de você ser ateu ou agnóstico é uma heresia imperdoável contra essa família que te concedeu a benção do santo batismo e te obrigou gentilmente, com amor e carinho, a fazer dois anos de catequese para ter o privilégio de receber o corpo de cristo na comunhão. Ainda dói e incomoda falar abertamente sobre sexo, como se fosse um assunto desconhecido, inexplorado, proibido. Mulher não pode gostar de sexo, não pode conversar sobre isso com outros homens. É coisa de vadia, de rameira, de mulher da vida. Ironicamente, foi graças ao sexo que eu estou aqui, que você está aqui, que o amor da sua vida está aqui, neste mundo, agressores ou vitimas; críticos ou criticados.
Se eu ouvir pagode, vão achar que eu sou pagodeira. E pagode é um gênero musical de muito mal gosto, que apetece apenas aos ouvidos de pobre, preto, favelado ou aqueles que usam aqueles óculos espelhados.
       Se eu chorar em público, vão achar que eu sou louca, que sou depressiva, que briguei com o namorado, que acabo de vir de um enterro. Se eu namorar um cara feio, vão dizer que não sei escolher homem, como é que eu consigo beijar uma criatura dessas na boca. Se eu pintar meu cabelo de verde vão dizer que eu não vou arrumar emprego, que agora eu sou rebelde, que eu estou usando drogas, só pode. Se eu for a praia, vão reparar nos meus pneuzinhos, na minha celulite, no tamanho dos meus seios, nas coxas que roçam uma na outra quando caminho. Por que eu não vim de maiô? Eu deveria estar com um biquíni maior. Melhor: eu deveria ter ficado em casa.
      Sempre antes de escrever, meço cuidadosamente as palavras, evitando publicar um texto muito intimista, o qual as pessoas vão se dar conta que eu sou assim ou assado. Mas que importância isso tem? Essa sou eu, numa luta diária contra a opinião alheia. Brigando contra o politicamente correto e aprendendo a me permitir mais, suprimindo o peso do que vão pensar de mim. Trabalhando constantemente em agradar cada vez menos os amigos, os parentes, as mães dos amigos e os vizinhos e agradar cada vez a mim. Afinal, agora, quem paga minhas contas - e o preço por ser autêntica - sou eu










segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Manual do homem de verdade


        Homem não chora. Até chora, mas não pode demonstrar isso em público. Se o fruto do seu pranto for a morte de um parente próximo ou a derrota do time na final da Libertadores, aí sim, é aceitável. Emocionar-se com uma comédia romântica ou com uma apresentação de balé é questionável: coisa de boiola. Não gostar de futebol é no mínimo esquisito. Só está liberado não gostar de futebol se o homem gostar de Rugby, que é coisa de macho. Ou se gostar de qualquer tipo de jogo que não seja dominó. Jogar alguma coisa é muito importante para fazer parte do clã dos homens de verdade. 
       Homem tem que ter uma aparência máscula. Não precisa ter barriga tanquinho e bíceps malhados, afinal aquele abdômen saliente de cerveja é supermáscula. Beber é supermásculo. Homem que não bebe bom sujeito não é: só pode ser boiola.
           Homem não pode se depilar, nem tirar muito a barba, nem cuidar das unhas. Já viu homem de verdade fazer as unhas? No manual do macho, creme dental e sabonete comum estão liberados; loção para pele oleosa e creme para as mãos é de gosto questionável. Coisa de metrossexual. E metrossexual é um nome bonito que inventaram para designar o boiola enrustido. O homem não pode ir num salão de beleza mais famoso e pagar um pouco mais caro por um corte de cabelo. Homem de verdade vai no barbeiro, que é um ambiente muito másculo onde todos conversam sobre futebol e sobre a vizinha gostosa da rua de baixo.
          Homem chefe de família não pode ficar desempregado. Homem não pode depender da ajuda da mulher. O homem é o provedor, o macho Alpha que vai à luta, mata o bicho e alimenta as crias.
O homem é aquele que protege, mesmo que isso coloque em risco a sua própria integridade física. Homem não pode sentir medo. Homem de verdade é corajoso.
       O homem não pode se dar ao luxo de aceitar que sua namorada ou esposa se ofereça para pagar a conta do restaurante ou do motel, e sim estar a postos em frente ao caixa com o cartão de crédito em mãos. Mulher pode receber esse tipo de gentileza. Homem não. Isso o coloca em uma situação de submissão. 
       Homem de verdade não pode negar sexo, mesmo que ele tenha tido um dia estressante e que só queira tomar um banho quente e relaxar ao lado de sua parceira, vendo qualquer porcaria na televisão. Se o homem negar fogo, só pode ter duas explicações: ou está tendo um caso com outra ou se descobriu boiola. Mas adultério não justifica falta de apetite sexual. Sendo assim, há grandes chances de o problema ser sua sexualidade. Se o homem pedir fio-terra para a parceira, então... É inaceitável, mesmo que seja apenas por puro prazer e que tenha confidenciado esse gosto apenas à ela. Homem de verdade não pode sentir prazer anal. Isso é coisa de boiola.
       A sociedade costuma julgar o homem pela moda, acostume-se: camisa com gola V profunda e calça colada não pega bem. A bola da vez é o homem desleixado, com barba e bigode grandes e roupas que evidenciem sua displicência fashion. Estão chamando de lambersexual.
         Homem não pode gostar de música pop ou de frequentar boates GLS. Sair para curtir a noite gay só está liberado se isso significar pegar duas lésbicas gostosas no fim da noite. Caso contrário, é boiolagem. 
        Também não é legal demonstrar um carinho excessivo pelos amigos. Um abraço e três batidinhas nas costas como cumprimento está mais que bom. Mais que isso já é coisa de boiola.

          Ser feliz está proibido, bem como ser livre. É fácil e simples. Será uma honra tê-lo no clã dos homens de verdade. A sociedade está apostando todas as fichas em você, e nós acreditamos no seu potencial. Agora vá e conquiste o mundo! Mas não se empolgue muito, são apenas algumas dicas. Empolgação demais também é algo questionável: coisa de boiola.





terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Pudim

   
     O vento fazia um barulho ensurdecedor lá fora, e o som dos galhos das árvores balançando era intimidador. Dentro, a lareira acesa, uma taça de vinho e um frio interno. Não era possível descrever o quão gelado o coração estava, somado ao vazio. O vento entrava pelos poros e orifícios e fazia uma dança alucinante dentro de si. Por vezes dava para ouvir o assobiar do vento dentro do seu peito, surdo, triste, aflito. Ele saíra por aquela porta sem dar explicações, talvez em busca de mais uma garrafa de algo que pudesse embriagar ambos e calar qualquer questionamento sobre a vida miserável que tinham vivido até então. A porta bateu e fez tremer cada centímetro da casa. Até o quadro na parede do casal feliz com a cara suja de sorvete no parque de diversões ficou meio torto – tal como os últimos meses de convivência: uma vaga lembrança do que foi um dia. Frágil e desgastado a ponto de qualquer vento mais forte desestabilizar.
     Ela sabia que não teria volta. Ela sabia porque havia preparado um jantar romântico mas esqueceu da salada de champignon – coisa que ele adora. Esqueceu mas não fez questão de voltar no supermercado e comprar. Em épocas mais prósperas, isso não aconteceria: voltaria correndo para buscar o complemento da salada e ainda sairia com ingredientes para um pudim. Mas ela não voltou: esqueceu os champignons e nem fez questão de sobremesa. Saiu de lá abraçada numa garrafa do seu vinho preferido pouco se importando com a preferência dele: vinho branco. Sim, havia acabado, o jantar estava meia boca e não havia sobremesa.
     Estava frio, ela estava de cabelo molhado, roupão e meias até o joelho, sentada no tapete felpudo em frente à lareira. Não vestiu o usual vestido preto nem passou batom vermelho. Saiu do banho como se estivesse pronta para dormir. Havia acabado.
     Havia acabado porque enquanto ela cortava cebolas ele trocava mensagens com alguém. Logo ele, que sempre foi tão prestativo, que sempre se divertia tanto com ela tentando descascar batatas ou que ficava atrás limpando a bagunça que ela fazia na cozinha. Havia acabado porque ela sabia que aquele jantar ficaria uma droga.
     Uma ou duas perguntas de como foi o dia. O dia foi bom - dizia ele sem tirar os olhos do celular -mas eu estava louco para chegar em casa e tirar esses sapatos, eu não deveria ter saído com esses sapatos novos, apertam demais, acho que vou usá-los apenas em formaturas, casamentos ou funerais. O dia dela tinha sido triste, porque ela sabia que havia acabado, mesmo sugerindo um jantarzinho regado à vinho para a noite. Você sabe - dizia ela - peguei trânsito, fiquei horas na estrada, mas graças a Deus cheguei em casa, vem, vamos comer, a comida está pronta.
   Silêncio. Não fosse o barulho do vento lá fora e das mandíbulas mastigando aquela refeição monocromática e sem graça, não se ouviria nenhum ruído. Ambos perdidos em seus próprios pensamentos, talvez pensando em como diriam adeus. Talvez ele tirasse debaixo da cama a mala já pronta, daria um beijo na bochecha e sumiria de vez. Ele faria isso, ela não tinha coragem. Ela esperaria até o último suspiro dessa relação desgastada, afinal o comodismo não a permitiria abandonar dessa forma tantos anos de convivência. Tinha um apego fora do comum pelas coisas. Taurina, sempre discursava sobre a influência do signo justificando sua teimosia e ao apego à rotina.
    Havia acabado não por falta de amor, mas por falta de empenho. Havia acabado porque ela estava sentada à mesa, desleixada, não tinha salada de champignon, não tinha vinho branco, não tinha sobremesa, e ele estava descalço. Havia acabado porque ele não moveu um dedo sequer para pôr os pratos e os talheres, e tudo o que mais queria para depois seria cair na cama e dormir. Havia acabado porque ela estava de roupão. Havia acabado porque não pareciam mais se interessar, de fato, pela rotina do outro. Tudo era chato. Era um martírio os jogos de quarta-feira e as TPM’s intermináveis. Viver havia se tornado uma tortura.
Sempre fomos tão parceiros, ela pensava, mudei de cidade para ficarmos mais próximos, renunciei a ótimas propostas de emprego e ainda não tenho filhos. Sou como uma árvore seca, minha vó diria. Talvez ele tenha amante. Talvez eu devesse ter um amante. Talvez a nossa vida fosse melhor se eu não fosse tão geniosa. Ou se não mexesse nos bolsos dele quando entra para o banho. Eu que antes o procurava demais, agora o procuro de menos. Perdi o interesse por nós dois. Talvez fosse melhor acabar com isso logo, tirar logo o curativo de uma vez para não ficar machucando a ferida ainda não cicatrizada. Talvez hoje fosse o dia. Talvez, talvez, talvez.


Lá estava ela, sentada no chão, tentando juntar os pedaços de si mesma, pouco importando-se onde ele estaria a uma hora dessas.  Estava frio dentro e fora da casa. Dentro e fora de si mesma. Terminaram de jantar e ele saíra apressado, sem dar muitas explicações, após longos minutos de silêncio naquela mesa. Ainda se amavam, mas havia acabado.
Estava decidida a dar um ponto final. Sem chorar, se jogar no chão, borrar a maquiagem. Fina, polida, sensata, diria adeus. Ela abdicaria da casa, levaria apenas o carro e o cachorro. Talvez voltasse pra casa da mãe, mas só pela manhã – dormiria num hotel qualquer.


Pouco tempo depois ele retorna, e a encontra terminando de fechar a última das três malas. Saíra para comprar vinho branco e sobremesa. Pudim.






sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Please come to Brazil


Oi linda, quanto tempo! Tava fuxicando a tua vida nas redes sociais e vi que tu não tá mais namorando. Confere? Mas isso é normal, não fica triste. Aproveita que tu é nova e vai atrás de gringo pra conseguir o Greencard. Morar aí pra se
mpre, já pensou?
Mas e o frio? Muito frio aí? Aqui tá o deserto do Saara, o mármore do inferno. Se não fosse o sacolé de fruta eu tava lascado. Bom que agora o trem é novo. Tu viu os novos trens? Agora eles têm ar-condicionado e minha avó não passa mais mal da pressão e aquela rodela de suor no sovaco na camisa social indo pra formatura no Bourbon Country também não existe mais. Tá uma beleza. Bom aqui no calor é ir pra Redenção, reunir os amigos. Aí tem muito parque? Tem? Bacana, bacana. Achei que aí só tinha neve e aquelas casas sem portão. Aquelas casas com sótan. Sótão. É sótan ou sotão? Essas casinhas com chaminé lembram a casa da minha tia-avó em Dois Irmãos. Por falar em chaminé, como foi o natal aí? Deve ter sido massa. Aqui teve rojão, muito rojão, rojão pra cacete. Os cachorros se esconderam no banheiro e um deles teve o tímpano estourado. E eu lá sabia que cachorro tinha tímpano? Levei no veterinário, teve que operar ás pressas. Aí tem cachorro? Digo, cachorro de rua? Aí parece que não tem pobreza, mendigo. Nem cachorro de rua. Nem rojão. Povo educado não faz barulho. Americano é muito educado, né não?
E como tá sendo morar sozinha? Aprendeu a cozinhar e a limpar? Importante mulher saber fazer essas coisas, senão não casa, hehe. Ah, vi umas fotos tuas em Nova Iorque. Chique, hein? Quem diria que aquela menina que pulava da cama às seis da manhã pra pegar no batente um dia pisaria na Times Square. Mas a Dilma ajudou, né não? Apesar disso, sou anti-petista. Votei no Aécio, fiz campanha pro Aécio e fiz toda a minha família votar no Aécio. Chega de corrupção, né não? Calma, calma, não precisa se revoltar. Parei. Não acredito que tu ia votar Luciana Genro. Sei que é brincadeira, sinto falta do teu senso de humor.
Mudando de assunto, uma amiga nossa em comum, aquela que morava em Porto Alegre com o namorado maconheiro, sabe? Ela me indicou o teu blog, apesar de não ser muito a praia dela. Ela curte esses livros adolescentes, essas histórias crepusculescas, sabe? Mas ela até que curtiu. Eu também curti, mas tu não é escritora né? Escritora escreve tipo romance, não me vem nenhum na cabeça agora, eu não sou muito de ler, mas tu sabe o que eu tô querendo dizer. Não tenho acompanhado muito, a vida anda muito corrida. Acho que li o último texto em novembro, mas também não lembro o nome. Por falar em novembro, como foi a Black Friday por aí? Comprou muita coisa? Vai me trazer o quê de presente? Hehe. Eu não comprei nada porque aqui no Brasil é tudo pela metade do dobro + taxas. Até fiquei meio assim, te vi online, ia te pedir um Iphone 6 e um Playstation 4. Esse Iphone dizem que dobra, né? Parece meio defeituoso, mas ainda assim é melhor que o 5. Te pago aqui. Ou melhor, te pago agora, me passa a tua conta. Acabou teu dinheiro? Como assim? Só ganha isso de bolsa? Credo. Por isso não votei na Dilma. E nem no PT. Talvez se a Dilma fosse tucana ou se o PT não fosse comunista. Mas essa grana é um absurdo. Não tá passando fome aí, né? Mas sem problemas, não faz mal, me viro. Tem um primo meu que tá no Texas, vou pedir pra ele. Na verdade ele tá no México. Mas talvez esteja na Califórnia, tô só acompanhando pelas fotos que ele posta. Será que ele ganha mais que vocês aí? Hehe.
 Mas me conta, volta quando? Agosto? Beleza, a gente vai se falando. Ou não. Como te disse, ando muito ocupado. Aliás, tô indo agora pegar o trem pra rodoviária. Vou pra Tramandaí descansar dessa loucura que é Porto Alegre. Tô só por uma Polar gelada. Aí não tem Polar, né? Hehe. Posto uma foto e te marco. Poderia ser com meu Iphone 6, porque a câmera do 5 já tá meio ruim, hehe. Será que vai dar problema com teu namorado? Putz, esqueci que tu terminou. Sorry. Vou indo lá. Se cuida. E não vamos perder o contato! Happy new wear. Year. É wear ou year?



sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Olhos amendoados

Os olhos amendoados que ele não parava de elogiar, na verdade não eram amendoados. Nunca foram. Olhos amendoados têm o canto externo levemente levantado, lembrando uma amêndoa.
Aqueles olhos eram, na verdade, olhos levemente puxados, sonolentos, que ficam ainda menores na presença de um sorriso, quando a face toda se comprime, esmagando-os. Olhos desse tipo não são simétricos e nem caem bem com qualquer maquiagem: a pálpebra móvel costuma ser pequena e pouco receptiva a delineadores e sombras escuras. Chorar, então, é um veneno: os globos oculares dão lugar a dois pequenos rasgos na parte superior da face. Ficam vermelhos, se escondem. Definitivamente, não eram olhos amendoados.
Olhos amendoados, segundo estudiosos de beleza e estética, são considerados os mais bonitos, pois o formato favorece o rosto feminino. Olhos puxados estão sempre com a aparência de inchados, deve-se tomar cuidado ao colorir demais ou colorir de menos e recomenda-se carregar sempre um corretivo na bolsa. Asiáticas enchem os consultórios de cirurgia plástica para ficarem um pouco parecidas com as ocidentais, passando pelo constrangimento de não serem reconhecidas no aeroporto quando comparadas com a antiga foto do passaporte. Mangás e Animes tem olhos gigantescos, e muitos atribuem isso ao fato de os asiáticos renegarem seu padrão genético; outros contrariam essa tese e explicam que os olhos avantajados servem para expressar de forma mais clara as emoções e sentimentos dos personagens. Olhos puxados não estampam revistas. Olhos amendoados sim.
A primeira vez que ouviu que ele adorava seus olhos amendoados, se decepcionou: "ou ele não entende nada de olhos, ou não entende nada de mim". Mas era tão bacana esse "me engana que eu gosto", esse galanteio despretensioso, essa desinformação encantadora.
Elogiar os olhos na fila do mercado, debaixo de uma marquise em dia de chuva ou no meio de uma festa é algo notável e digno de onomatopeias apaixonadas. 

Ao invés de corrigir esse pequeno deslize, decidiu entrar no jogo:
- "Você tem olhos lindos... eles são amendoados..."
- "Obrigada! são seus olhos"

E eram. Ela, então, calava-se, tímida, vermelha, com seus pequenos olhos quase fechados, após esboçar um sorriso de agradecimento. Por dentro sentia um pouquinho de inveja e lamentava a injustiça divina, desejando para si aqueles olhos amendoados, que ele não fazia a menor ideia que possuía.