domingo, 16 de março de 2014

Reticências das reticências

Quero pensar, de fato
que as reticências das reticências,
são usadas para enganar
àqueles com o saber nato
que devoram literaturas
aos amantes da leitura
Que apenas sabem julgar

Julgar a ortografia,
as frases pós-modernas
sem pontos, vírgulas, espaços
daqueles que criam poesia
sem rima, acento, magia
apenas com displicência 
desapego e fortes traços

E que belas são as reticências
objeto deste poema
nunca completam a sentença
misteriosas, hesitantes,
deixam no ar por instantes:
enrolação é o seu lema

E há aqueles que abrilhantaram
sua feliz concepção:
terminam a frase de um jeito
pitoresco, de efeito:
multiplicaram a pontuação

Pra você que pensa muito,
muito escreve e muito lê
vocabulário impecável
finge não ver o que vê
Se você é especialista
não julgue um modernista
que escreve, mas não lê.................................................................................







quarta-feira, 12 de março de 2014

O tempo não para

Acordo, já é tarde
O sono roubou o meu tempo
O sol lá fora arde
Mas meu corpo é desalento

Sigo ansiando descanso
Pernas pro ar, ócio
Por um sono tranquilo, manso
Topo qualquer negócio

O sábado se aproxima
Tempo livre, que alegria!
Viver num tempo tão curto
Não tem a beleza da rima

Acordei, de supetão
com idade avançada
não é forte o coração
estou velha e cansada

Sobrevivi a vida inteira
Trabalhei, ganhei meu pão
Percebi que não fiz nada:
Minha vida foi em vão

Hoje choro baixinho
Lamentando o que não fiz
Não viajei, mas fiz poupança
E hoje estou na riqueza
Mergulhada na tristeza:
Deveria ter sido feliz


segunda-feira, 10 de março de 2014

Sobre mulheres e flores

Diz o escritor Luís Fernando Veríssimo que "mulher que não recebe flores murcha rapidamente e adquire traços masculinos como rispidez e brutalidade". Esta frase faz parte de uma das dezenas de crônicas atribuídas a ele. De sua autoria ou não, não concordo com a sentença.
Mulher murcha rapidamente por não ser reconhecida em seu ambiente de trabalho; por desempenhar funções equivalentes as do sexo masculino e ganhar absurdamente menos.
Mulher murcha rapidamente ao se dedicar interruptamente às funções de mãe, esposa, amante, mulher e amiga e não ser notada: fazer tudo é muito pouco, afinal mulher é pau para toda obra.
Mulher adquire traços de rispidez e brutalidade ao sentir na pele a violência doméstica, ser estuprada física e moralmente pelo companheiro por quem jurou amar na saúde e na doença. E essa doença tem nome: machismo. Está entranhada nas vísceras e neurônios. Não há mais amor.
Mulher adquire traços de rispidez e brutalidade ao se sentir invadida, violada, constrangida ao ir tomar um sorvete no shopping e ouvir as frases mais grotescas que um homem pode proferir. Está calor. Suas pernas estão à mostra. E você é uma vadiazinha que não sairia assim na rua se não quisesse chamar a atenção.
Amo flores, de verdade, mas não faço questão em ganhá-las.
Sempre preferi meia dúzia de margaridas arrancadas de algum quintal do que rosas vermelhas envoltas em papel selofane: tudo muito prosaico e mecânico.
Nas datas comemorativas em que a mulher é o foco, as rosas (vermelhas) tomam conta do comércio. Não precisa pensar em nada mais original, afinal, qual a mulher que não se derrete ao receber um belo buquê de flores? 
Eu me derreto com gente educada. Gente de caráter. Pessoas que reconhecem o meu trabalho, respeitam minhas pernas de fora, que não insistem em me fazer engolir goela abaixo cantadas ofensivas e de baixo calão.

Respeite meus direitos, minhas vontades, meu corpo.
O fato de eu ter um útero não me torna mais ou menos digna do que qualquer ser humano. Não banque o ridículo (a) com um discurso sexista e opressor.

Amo flores, de verdade, mas não faço questão em ganhá-las. 
A não ser que seja meia dúzia de margaridas arrancadas de algum quintal.

O presente mais original nos dias de hoje é o respeito. Dê-me em abundância.


terça-feira, 4 de março de 2014

Carta a um amigo

"Eu não posso acabar com todos os seus problemas, dúvidas ou medos, mas posso ouvir você, e juntos podemos procurar soluções.
Eu não posso apagar as mágoas e as dores do seu passado, nem decidir qual será o seu futuro, mas no presente posso estar com você, se precisares de mim.
Eu não posso impedir que você leve tombos, mas posso oferecer minha mão para você agarrar e levantar-se. Suas alegrias, triunfos e sucessos não me pertencem, mas seus risos e sorrisos fazem parte dos meus maiores bens.
Não é de minha alçada tomar decisões por você, nem julgar as decisões que você toma; mas posso te apoiar, encorajar e ajudar, se me pedir.
Eu não posso traçar ou impor limites, mas posso apontar caminhos alternativos, procurar com você medidas de crescimento, formas de encontrar-se, meios de ser você mesmo.
Eu não posso salvar o seu coração de ser partido pela dor, pela mágoa, perda ou tristeza, mas posso chorar com você, e ajudá-lo a juntar os pedaços.
Eu não posso dizer quem você é ou como deveria ser. Simplesmente posso te amar, apenas te amar, e te chamar de amigo"


Vera Severo

domingo, 2 de março de 2014

Carnaval

Eu e minha prima, carnaval de 1998.
Minha família tinha uma tradição no carnaval: levar as crianças para o carnaval infantil, de clube. Ah, como era bom. Era algo sagrado, inviolável. Todos os anos o protocolo era seguido à risca e não havia imprevisto que nos impedisse de aproveitar esta época do ano. "Mas a vó não está se sentindo muito bem, sabe. Acho melhor ela não ir" "pois que vá adoentada mesmo. Não há marchinha que não cure as enfermidades do corpo, nem da alma". E íamos, felizes: eu, minha mãe, minha irmã, meus tios, minha prima e meus avós.
A preparação para a festa começava na semana anterior. Minha prima, mais abastada, ganhava as mais diversas fantasias, ano após ano: bailarina, odalisca, dálmata (sim, o cachorro com as pintinhas do filme da Disney). Já eu, utilizava dos recursos disponíveis para improvisar uma fantasia, e minha mãe era fera nisso. Eu ia de qualquer coisa, não importava, desde que eu fosse. Mas, confesso que eu tinha minhas preferências: as dançarinas rebolativas do extinto grupo É o Tchan. Eu sempre era a loira, se tratando do carnaval ou de qualquer outra brincadeira envolvendo as danças do grupo.
Lá no clube, eu me acabava. Minha felicidade era evidente, afinal era carnaval, oras! A época mais alegre do ano. Minha família procurava uma mesa mais próxima da pista possível, para olhar as crianças e impedir que as pestes fugissem do campo de visão.
Eu e minha prima vivíamos numa relação de amor e ódio. Mas na pista de dança éramos só felicidade, embaladas por É o Tchan e as mais diversas letras de axé da época.
Geralmente retornávamos pra casa por volta das 20hs, e o fato de a noite já ter caído me dava um prazer imenso: eu estava num clube, e já era noite. Me sentia adulta, madura, voltando de uma festa.
Com o passar dos anos, minha família que já era pequena, foi diminuindo gradativamente. Entes queridos foram embora, agregados já não fazem mais parte do clã e as idas ao clube foram ficando escassas, até que o ritual carnavalesco de todos os anos deixou de existir.

Hoje em dia, detesto o carnaval. Não existe mais o brilho de outrora, as coisas não são mais tão fáceis e a ingenuidade é efêmera: vai se perdendo conforme vamos crescendo, incorporando responsabilidades e deixando de ser criança. Dia desses estava comentando com uma amiga a respeito das letras de duplo sentido que embalavam nossa diversão. Confesso que, até hoje não sei o que significa "segurar o tchan".
Lembro com saudade daquele tempo, onde eu não tinha muito, mais tinha uma família linda, e isso era tudo. Hoje, já não vejo nada de mais em voltar no outro dia de uma festa. Detesto ser adulta: não consigo levar a vida com leveza e ver graça nas coisas simples.  
Crescer é, sem dúvida, a coisa mais chata de toda a nossa existência. E essa chatisse crônica, doença contemporânea, não há marchinha que cure.