terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Pudim

   
     O vento fazia um barulho ensurdecedor lá fora, e o som dos galhos das árvores balançando era intimidador. Dentro, a lareira acesa, uma taça de vinho e um frio interno. Não era possível descrever o quão gelado o coração estava, somado ao vazio. O vento entrava pelos poros e orifícios e fazia uma dança alucinante dentro de si. Por vezes dava para ouvir o assobiar do vento dentro do seu peito, surdo, triste, aflito. Ele saíra por aquela porta sem dar explicações, talvez em busca de mais uma garrafa de algo que pudesse embriagar ambos e calar qualquer questionamento sobre a vida miserável que tinham vivido até então. A porta bateu e fez tremer cada centímetro da casa. Até o quadro na parede do casal feliz com a cara suja de sorvete no parque de diversões ficou meio torto – tal como os últimos meses de convivência: uma vaga lembrança do que foi um dia. Frágil e desgastado a ponto de qualquer vento mais forte desestabilizar.
     Ela sabia que não teria volta. Ela sabia porque havia preparado um jantar romântico mas esqueceu da salada de champignon – coisa que ele adora. Esqueceu mas não fez questão de voltar no supermercado e comprar. Em épocas mais prósperas, isso não aconteceria: voltaria correndo para buscar o complemento da salada e ainda sairia com ingredientes para um pudim. Mas ela não voltou: esqueceu os champignons e nem fez questão de sobremesa. Saiu de lá abraçada numa garrafa do seu vinho preferido pouco se importando com a preferência dele: vinho branco. Sim, havia acabado, o jantar estava meia boca e não havia sobremesa.
     Estava frio, ela estava de cabelo molhado, roupão e meias até o joelho, sentada no tapete felpudo em frente à lareira. Não vestiu o usual vestido preto nem passou batom vermelho. Saiu do banho como se estivesse pronta para dormir. Havia acabado.
     Havia acabado porque enquanto ela cortava cebolas ele trocava mensagens com alguém. Logo ele, que sempre foi tão prestativo, que sempre se divertia tanto com ela tentando descascar batatas ou que ficava atrás limpando a bagunça que ela fazia na cozinha. Havia acabado porque ela sabia que aquele jantar ficaria uma droga.
     Uma ou duas perguntas de como foi o dia. O dia foi bom - dizia ele sem tirar os olhos do celular -mas eu estava louco para chegar em casa e tirar esses sapatos, eu não deveria ter saído com esses sapatos novos, apertam demais, acho que vou usá-los apenas em formaturas, casamentos ou funerais. O dia dela tinha sido triste, porque ela sabia que havia acabado, mesmo sugerindo um jantarzinho regado à vinho para a noite. Você sabe - dizia ela - peguei trânsito, fiquei horas na estrada, mas graças a Deus cheguei em casa, vem, vamos comer, a comida está pronta.
   Silêncio. Não fosse o barulho do vento lá fora e das mandíbulas mastigando aquela refeição monocromática e sem graça, não se ouviria nenhum ruído. Ambos perdidos em seus próprios pensamentos, talvez pensando em como diriam adeus. Talvez ele tirasse debaixo da cama a mala já pronta, daria um beijo na bochecha e sumiria de vez. Ele faria isso, ela não tinha coragem. Ela esperaria até o último suspiro dessa relação desgastada, afinal o comodismo não a permitiria abandonar dessa forma tantos anos de convivência. Tinha um apego fora do comum pelas coisas. Taurina, sempre discursava sobre a influência do signo justificando sua teimosia e ao apego à rotina.
    Havia acabado não por falta de amor, mas por falta de empenho. Havia acabado porque ela estava sentada à mesa, desleixada, não tinha salada de champignon, não tinha vinho branco, não tinha sobremesa, e ele estava descalço. Havia acabado porque ele não moveu um dedo sequer para pôr os pratos e os talheres, e tudo o que mais queria para depois seria cair na cama e dormir. Havia acabado porque ela estava de roupão. Havia acabado porque não pareciam mais se interessar, de fato, pela rotina do outro. Tudo era chato. Era um martírio os jogos de quarta-feira e as TPM’s intermináveis. Viver havia se tornado uma tortura.
Sempre fomos tão parceiros, ela pensava, mudei de cidade para ficarmos mais próximos, renunciei a ótimas propostas de emprego e ainda não tenho filhos. Sou como uma árvore seca, minha vó diria. Talvez ele tenha amante. Talvez eu devesse ter um amante. Talvez a nossa vida fosse melhor se eu não fosse tão geniosa. Ou se não mexesse nos bolsos dele quando entra para o banho. Eu que antes o procurava demais, agora o procuro de menos. Perdi o interesse por nós dois. Talvez fosse melhor acabar com isso logo, tirar logo o curativo de uma vez para não ficar machucando a ferida ainda não cicatrizada. Talvez hoje fosse o dia. Talvez, talvez, talvez.


Lá estava ela, sentada no chão, tentando juntar os pedaços de si mesma, pouco importando-se onde ele estaria a uma hora dessas.  Estava frio dentro e fora da casa. Dentro e fora de si mesma. Terminaram de jantar e ele saíra apressado, sem dar muitas explicações, após longos minutos de silêncio naquela mesa. Ainda se amavam, mas havia acabado.
Estava decidida a dar um ponto final. Sem chorar, se jogar no chão, borrar a maquiagem. Fina, polida, sensata, diria adeus. Ela abdicaria da casa, levaria apenas o carro e o cachorro. Talvez voltasse pra casa da mãe, mas só pela manhã – dormiria num hotel qualquer.


Pouco tempo depois ele retorna, e a encontra terminando de fechar a última das três malas. Saíra para comprar vinho branco e sobremesa. Pudim.






sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Please come to Brazil


Oi linda, quanto tempo! Tava fuxicando a tua vida nas redes sociais e vi que tu não tá mais namorando. Confere? Mas isso é normal, não fica triste. Aproveita que tu é nova e vai atrás de gringo pra conseguir o Greencard. Morar aí pra se
mpre, já pensou?
Mas e o frio? Muito frio aí? Aqui tá o deserto do Saara, o mármore do inferno. Se não fosse o sacolé de fruta eu tava lascado. Bom que agora o trem é novo. Tu viu os novos trens? Agora eles têm ar-condicionado e minha avó não passa mais mal da pressão e aquela rodela de suor no sovaco na camisa social indo pra formatura no Bourbon Country também não existe mais. Tá uma beleza. Bom aqui no calor é ir pra Redenção, reunir os amigos. Aí tem muito parque? Tem? Bacana, bacana. Achei que aí só tinha neve e aquelas casas sem portão. Aquelas casas com sótan. Sótão. É sótan ou sotão? Essas casinhas com chaminé lembram a casa da minha tia-avó em Dois Irmãos. Por falar em chaminé, como foi o natal aí? Deve ter sido massa. Aqui teve rojão, muito rojão, rojão pra cacete. Os cachorros se esconderam no banheiro e um deles teve o tímpano estourado. E eu lá sabia que cachorro tinha tímpano? Levei no veterinário, teve que operar ás pressas. Aí tem cachorro? Digo, cachorro de rua? Aí parece que não tem pobreza, mendigo. Nem cachorro de rua. Nem rojão. Povo educado não faz barulho. Americano é muito educado, né não?
E como tá sendo morar sozinha? Aprendeu a cozinhar e a limpar? Importante mulher saber fazer essas coisas, senão não casa, hehe. Ah, vi umas fotos tuas em Nova Iorque. Chique, hein? Quem diria que aquela menina que pulava da cama às seis da manhã pra pegar no batente um dia pisaria na Times Square. Mas a Dilma ajudou, né não? Apesar disso, sou anti-petista. Votei no Aécio, fiz campanha pro Aécio e fiz toda a minha família votar no Aécio. Chega de corrupção, né não? Calma, calma, não precisa se revoltar. Parei. Não acredito que tu ia votar Luciana Genro. Sei que é brincadeira, sinto falta do teu senso de humor.
Mudando de assunto, uma amiga nossa em comum, aquela que morava em Porto Alegre com o namorado maconheiro, sabe? Ela me indicou o teu blog, apesar de não ser muito a praia dela. Ela curte esses livros adolescentes, essas histórias crepusculescas, sabe? Mas ela até que curtiu. Eu também curti, mas tu não é escritora né? Escritora escreve tipo romance, não me vem nenhum na cabeça agora, eu não sou muito de ler, mas tu sabe o que eu tô querendo dizer. Não tenho acompanhado muito, a vida anda muito corrida. Acho que li o último texto em novembro, mas também não lembro o nome. Por falar em novembro, como foi a Black Friday por aí? Comprou muita coisa? Vai me trazer o quê de presente? Hehe. Eu não comprei nada porque aqui no Brasil é tudo pela metade do dobro + taxas. Até fiquei meio assim, te vi online, ia te pedir um Iphone 6 e um Playstation 4. Esse Iphone dizem que dobra, né? Parece meio defeituoso, mas ainda assim é melhor que o 5. Te pago aqui. Ou melhor, te pago agora, me passa a tua conta. Acabou teu dinheiro? Como assim? Só ganha isso de bolsa? Credo. Por isso não votei na Dilma. E nem no PT. Talvez se a Dilma fosse tucana ou se o PT não fosse comunista. Mas essa grana é um absurdo. Não tá passando fome aí, né? Mas sem problemas, não faz mal, me viro. Tem um primo meu que tá no Texas, vou pedir pra ele. Na verdade ele tá no México. Mas talvez esteja na Califórnia, tô só acompanhando pelas fotos que ele posta. Será que ele ganha mais que vocês aí? Hehe.
 Mas me conta, volta quando? Agosto? Beleza, a gente vai se falando. Ou não. Como te disse, ando muito ocupado. Aliás, tô indo agora pegar o trem pra rodoviária. Vou pra Tramandaí descansar dessa loucura que é Porto Alegre. Tô só por uma Polar gelada. Aí não tem Polar, né? Hehe. Posto uma foto e te marco. Poderia ser com meu Iphone 6, porque a câmera do 5 já tá meio ruim, hehe. Será que vai dar problema com teu namorado? Putz, esqueci que tu terminou. Sorry. Vou indo lá. Se cuida. E não vamos perder o contato! Happy new wear. Year. É wear ou year?



sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Olhos amendoados

Os olhos amendoados que ele não parava de elogiar, na verdade não eram amendoados. Nunca foram. Olhos amendoados têm o canto externo levemente levantado, lembrando uma amêndoa.
Aqueles olhos eram, na verdade, olhos levemente puxados, sonolentos, que ficam ainda menores na presença de um sorriso, quando a face toda se comprime, esmagando-os. Olhos desse tipo não são simétricos e nem caem bem com qualquer maquiagem: a pálpebra móvel costuma ser pequena e pouco receptiva a delineadores e sombras escuras. Chorar, então, é um veneno: os globos oculares dão lugar a dois pequenos rasgos na parte superior da face. Ficam vermelhos, se escondem. Definitivamente, não eram olhos amendoados.
Olhos amendoados, segundo estudiosos de beleza e estética, são considerados os mais bonitos, pois o formato favorece o rosto feminino. Olhos puxados estão sempre com a aparência de inchados, deve-se tomar cuidado ao colorir demais ou colorir de menos e recomenda-se carregar sempre um corretivo na bolsa. Asiáticas enchem os consultórios de cirurgia plástica para ficarem um pouco parecidas com as ocidentais, passando pelo constrangimento de não serem reconhecidas no aeroporto quando comparadas com a antiga foto do passaporte. Mangás e Animes tem olhos gigantescos, e muitos atribuem isso ao fato de os asiáticos renegarem seu padrão genético; outros contrariam essa tese e explicam que os olhos avantajados servem para expressar de forma mais clara as emoções e sentimentos dos personagens. Olhos puxados não estampam revistas. Olhos amendoados sim.
A primeira vez que ouviu que ele adorava seus olhos amendoados, se decepcionou: "ou ele não entende nada de olhos, ou não entende nada de mim". Mas era tão bacana esse "me engana que eu gosto", esse galanteio despretensioso, essa desinformação encantadora.
Elogiar os olhos na fila do mercado, debaixo de uma marquise em dia de chuva ou no meio de uma festa é algo notável e digno de onomatopeias apaixonadas. 

Ao invés de corrigir esse pequeno deslize, decidiu entrar no jogo:
- "Você tem olhos lindos... eles são amendoados..."
- "Obrigada! são seus olhos"

E eram. Ela, então, calava-se, tímida, vermelha, com seus pequenos olhos quase fechados, após esboçar um sorriso de agradecimento. Por dentro sentia um pouquinho de inveja e lamentava a injustiça divina, desejando para si aqueles olhos amendoados, que ele não fazia a menor ideia que possuía.



domingo, 14 de dezembro de 2014

Nossa idade não existe

Tenho quase vinte e três, apesar de ainda sentir que tenho vinte. Dezoito, talvez. Não fosse o fato de eu estar na segunda metade da faculdade de engenharia, poderia sugerir que as vezes tenho dez. Faço birra quando algo me incomoda e não costumo ser muito tolerante. Quando estou com medo, me sinto com cinco. Coleciono bichinhos de pelúcia, amo os filmes do Walt Disney e tenho varias peças de roupa do Mickey. Todas as noites durmo vestida de piu-piu, num revival de emoções da imortal pré-escola, época mais feliz da minha vida.
Quando estou carente e deito no colo da minha mãe, me sinto com dois.
Quando vou ao supermercado sozinha fazer compras para a casa, me sinto com trinta. Decidir entre o sabão que limpa melhor e o que tem o perfume melhor é realmente uma tarefa árdua.
Quando ganhava um elogio do chefe, me sentia com quarenta e poucos, vinte de experiência, bem sucedida e realizada profissionalmente. Até o momento em que eu me sentia perdida. Parecia que tinha dezoito recém feitos, há poucos dias no mundo corporativo como uma estagiaria bobinha, inexperiente e ávida por mostrar um talento ainda bruto.
Quando converso com minha mãe, me sinto com cinquenta. Conversamos como duas mulheres adultas, muito além de uma esperada relação maternal e confortável.
Quando o barulho está alto, me sinto com sessenta - ranzinza e infeliz. Quando saio da esteira, ofegante, sedentária e com dores no tornozelo, me sinto com setenta e poucos.
Quando deixo de amar, me sinto no leito de morte.
É uma instigante luta diária conviver com essa variação de idades, esses conflitos internos, essa inconstância de maturidade. Tenho amigos de dezessete e de quarenta. Muitas vezes aconselho os de quarenta e sou aconselhada pelos de dezessete. E são nesses momentos que percebo que eu sou várias, que todos somos vários. Somos a menina que sonha em ser grande, rebocando a cara com o batom ingenuamente roubado da mãe. Somos a cumplicidade entre dois amigos que se entreolham e riem com a mão na boca durante o discurso chato de fim de ano do dono da empresa. Somos o cara de meia idade bem sucedido que chega em casa, deixa o paletó em cima da cadeira e coloca seu pijama do Batman, pronto pra dormir e descansar as suas inseguranças juvenis.



segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Dilema

Ah, se eu soubesse como me fazer feliz,
rasgava todas as teorias que eu fiz,
acreditando saber muito sobre tudo e tudo o que eu me pergunto
É se a felicidade na verdade está no seu amor...

Ah, se o impossível era passível de querer
queria eu ser seu amor possível
Possivelmente te querer é minha fuga
E eu fujo, constantemente...

De ti, não quero nada a não ser somente sua,
Imaginando que essa minha vida dura
um dia vai cessar, vai cessar

e aí,

Eu poderei viver somente por prazer,
Prazer em conhecer, sou o seu amor,
Que à sua porta bate sem nenhum pudor,
despida da cabeça aos pés,
vestida apenas da vontade
de morrer de amor.

sábado, 15 de novembro de 2014

Engraçado o universo

Engraçado o universo
fragmentar nossos planos
esmigalhar nossas esperanças
mudar o rumo
do nosso destino
improvável, incerto
apesar de nossas andanças
e nossas tantas convicções
tudo se esvai
em apenas um segundo

Atravessou a rua antes
porque saiu de casa antes
porque tomou banho antes
porque se lembrou
do seu atraso recorrente
e das tantas reclamações
De qualquer forma,
havia acordado mais cedo
porque dormiu cedo antes
porque o livro estava chato
porque a luz estava fraca
porque o dia tinha sido cheio
porque foi promovido
e porque se lembrou
de seu atraso recorrente
ai então, de qualquer forma,
porque dormiu cedo antes,
porque o livro estava chato,
porque a luz estava fraca,
porque o dia tinha sido cheio,
porque foi promovido,
e porque se lembrou
do seu atraso recorrente,
e das tantas reclamações
tomou banho antes,
saiu de casa antes,
atravessou a rua antes,
e o carro passou
e esmigalhou as esperanças
e o universo mudou o rumo
do destino
E apesar de nossas andanças
e nossas tantas convicções
tudo se esvai
em apenas um segundo

Engraçado, o universo.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Dom Casmurro

                 Costumo ler de tudo, pesquiso sobre a vida dos escritores e tenho fases de obsessão, dependendo do momento da minha vida. Quando eu era pré-adolescente, por exemplo, tinha fixação por Pedro Bandeira. Lia todos os livros infanto-juvenis do escritor, até que eu entrei para o Ensino Médio. Eu gostava de Clarice Lispector antes dela assinar frases fictícias filosofando sobre a vida em timelines aleatórias no Facebook. Tive a fase Luis Fernando Veríssimo, porque sempre achei este senhor muito culto e irônico, além de carregar o estigma de ser filho do grande Érico Veríssimo. Ponto pra ele.

             Quando ia acampar com minha irmã, lia Martha Medeiros. Lembro que a gente ia para a beira da Lagoa, ela com a cara ensopada de protetor solar, camiseta, chapéu, o medo de pegar sol e o livro Montanha Russa, da Martha. Teve uma época que eu tava mais pro suspense, então devorava Agatha Christie e todos os assassinatos desvendados brilhantemente por Hercule Poirot.

              Ultimamente estou meio obcecada por escritores novos, como o Gregório Duvivier. O cara tem vinte e oito anos, é escritor, roteirista, ator, comediante, inteligente, esquerdista e lindo. Espero ansiosa pela segunda-feira, dia de publicação na sua coluna semanal na Folha de São Paulo, um dos meus poucos prazeres nesse dia cruel. Além disso, teve seu novo livro, "Put some Farofa" elogiado  e recomendado por nada mais nada menos que meu velho Veríssimo. Porém, talvez nenhum escritor tenha me intrigado tanto durante minha formação como leitora e observadora-reflexiva como Machado de Assis. Todo mundo na época de colégio torcia o nariz para as obras do escritor, talvez pela linguagem rebuscada do final do século XIX e por buscarem leituras que estivessem ligadas ao universo adolescente. Não sei. Só sei que ele me ganhou com Dom Casmurro. Lembro que li para o vestibular, depois reli por prazer e li pela terceira vez com um olho clínico, uma percepção de detetive, inspirada no Poirot na tentativa de desvendar o assassinato do amor de Bentinho por Capitu, que morreu aos poucos, sufocado pelo orgulho e pela dúvida da traição. Fiquei dias, semanas, meses, tentando encontrar uma resposta. Sem sucesso. Nem eu nem grandes estudiosos da obra de Machado de Assis encontraram respostas para tal enigma literário.

              A mesma sensação que algumas pessoas têm ao ler sobre o amor de Edward e Bella ou sobre a descrição detalhada do mundo mágico de Harry Potter eu tive diversas vezes lendo Dom Casmurro. Eu fechava o livro e os olhos e imaginava cada cena. Bentinho penteando os cabelos de Capitu. O beijo. A esperteza de Capitu ao fingir para a mãe que nada aconteceu. A descrição do autor para os olhos da moça: "olhos de ressaca". Quer algo mais profundo e poético do que isso? Olhos que, assim como o mar em dias de ressaca, arrasta tudo para dentro de si. "Olhos de cigana obliqua e dissimulada". Fiquei sem ar e sem chão lendo esse livro. Machado descrevia cada cena com uma riqueza poética e metafórica que me deixou apaixonada pela história de Bento e Capitolina. Até que o livro acabou, pela terceira vez. E virou minissérie. E conseguiu manter a genialidade e a poesia do livro, para minha satisfação.

          Ah, se esses leitores de meia tigela que gastam tempo publicando frases e pensamentos de escritores que nunca leram soubessem o valor de um bom Machado de Assis. E de Clarice Lispector, quando não for uma frase aleatória atribuída a ela filosofando sobre a vida, da forma mais clichê possível.

domingo, 9 de novembro de 2014

G(D)ramática

Em todos os meus predicados,
As ações envolvem você
A gente ama, briga, canta
Tudo na mesma oração
Absoluta, confusa, complexa
Ás vezes fico indeterminado
Quando você vai embora
E eu me escondo, me perco
Decido então ser sujeito simples
Sozinho, posso até me bastar
Mas a vida fica meio incompleta
E eu acho que a gente combina
Enquanto sujeito composto.










quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Antes

Antes aquela rua tinha uma grama farta e verde nas calçadas, antes havia crianças brincando ate tarde e a vida era mais simples.
Antes o portão do vizinho era de madeira, a casa não tinha reboco e o sobradinho do outro lado da rua era uma loja de roupas, antes.
Antes o muro alto dividia a casa do vizinho, antes eu pulava o muro pra brincar. Antes eu provocava o cachorro, que tentava me alcançar no alto do muro.
Antes o pai tinha bicicleta, depois moto, depois moto e bicicleta, depois carro, Antes a família era grande. Antes a vó era viva.
Antes tinha banho de piscina de plástico, antes tinha guaraná de garrafa a oitenta centavos, antes tinha pião e ioiô. Antes tinha carnaval de clube, antes tinha bolhas de sabão, antes tinha sandália da Xuxa. Antes a irmã namorava no portão, e eu escondido. Antes tinha a prima morando ao lado de casa. Primeira e melhor amiga. Antes tinha promessas de amizade eterna.

Depois a grama morreu, o portão de madeira ganhou pintura, e depois foi substituído por um de ferro. A parede ganhou reboco e a loja de roupas fechou.
Depois o muro ficou baixo e eu alta. Depois o muro ganhou grades e eu responsabilidades.
Depois o cachorro foi levado para outra cidade, e depois morreu. Depois o pai teve a bicicleta roubada, a moto vendida, o carro amassado e depois diabetes.
Depois a vó morreu. Depois a família diminuiu.
Depois a piscina furou, depois o guarana de garrafa foi substituído pela coca zero. Depois o clube fechou e levou embora o carnaval. Depois o pião e o ioiô tornaram-se obsoletos.
Depois a sandália ficou pequena. Depois a irma casou, e eu namorei no portão.
Depois a prima se mudou. Depois a prima teve filho. Depois a prima casou.
Os amigos também se mudaram, casaram e tiveram filhos. Inclusive o amor de infância. Depois nunca mais houve contato. As amizades eternas eternizaram o esquecimento.
Depois a rua ficou vazia. E chata.

O antes tem gosto de saudade. O antes é um vídeo-game Dynavision. O antes é o almoço de pascoa, o antes é o presente embaixo da árvore de natal e a espera pela meia-noite. O antes é o primeiro dia de aula da pré-escola. O antes é a primeira professora. O antes é uma tarde de Chaves e Chapolin na TV.

A gente era feliz e não sabia. Isso antes.



segunda-feira, 20 de outubro de 2014

A verdade sobre a verdade

     

        Ninguém gosta de ouvir a verdade. Todos clamam por sinceridade mas poucos sabem lidar com a nudez dos fatos, quando transbordam imparcialidade e agem como um tapa na nossa cara. "Quero um amor sincero", "quero honestidade", "a verdade machuca por um momento, mas a mentira machuca por toda a vida". Pura lorota. Mulher sabe que está gorda mas pergunta para ter a certeza. As amigas geralmente a confortam explicando que quem gosta de osso é cachorro e que ela está ótima, com uma aparência saudável. Já o marido quando não mente descaradamente dizendo que prefere ela à qualquer modelo sem graça, usa de eufemismos - erroneamente. "Fofinha", "gostosinha". Ela perguntou se estava gorda e a falta de habilidade do homem a fez ter a plena certeza (coisa que ela já tinha, mas estava esperando por uma massagem no ego). "Entra pra academia, sua balofa!". Nunca ouvi um homem dizer isso, sabe por quê? Porque a verdade machuca, mulher é bicho complicado e homem nenhum gosta de dormir no sofá. Temos o vício de perguntar quando já sabemos a resposta. Levantamos a bandeira da honestidade mas não temos maturidade para aceitar críticas e acabamos agindo da mesma forma quando nos pedem um conselho. Geralmente tentamos atenuar nossa fria opinião, afinal, pelo menos uma vez na vida já sentimos na carne como a verdade se comporta e o que ela causa no nosso íntimo. A clareza das ideias dá lugar a uma opinião confortável e menos impactante. Não queremos ferir, tampouco sofrer. Aí o mundo segue esse ciclo de dissimulação e omissões. 

      Eu tenho uma relação de amor e ódio com a verdade. Dia desses um amigo árabe que mora no Líbano disse que eu havia engordado depois que mudei para os Estados Unidos, que as fotos denunciavam centímetros a mais de abdômen e bochechas mais salientes. Na hora fiquei perplexa, mas foi ótimo, um choque de realidade. No entanto, não voltei pra academia e ando me entupindo de sorvete, porem encontrei uma solução mais eficaz para o meu problema com a balança: cortei relações com o árabe.

    Não queremos um amor sincero. Queremos uma pílula diária que eleve os nossos níveis de autoestima, um amigo que sempre concorde conosco e a omissão de opiniões que julgamos desnecessárias. Enquanto isso, devoramos nossas ilusões, nos empanturramos de insegurança e a vida segue, sem grandes surpresas.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Cartões

       Sempre quando ganho algum presente, mesmo que simbólico, fico procurando o cartão. E quando o cartão é entregue separadamente, fora da embalagem, é a primeira coisa que verifico. E julgo. Por exemplo, aqueles cartõezinhos comprados em papelaria ou loja de presentes por si só não costumam ser muito originais - e podem não significar absolutamente nada se quem comprou o cartão não adicionou suas felicitações escritas a próprio punho. Se o presente foi comprado com o dinheiro da vaquinha feita pelos colegas de trabalho, ok. É realmente difícil encontrar um cartão que comporte profundas reflexões e felicitações das cinquenta pessoas do escritório. Nesse caso, assinar o nome é suficiente. Por outro lado, amigos próximos, namorado e familiares tem o dever de escrever decentemente no bendito cartão. 

    Se o próprio cartão é feito a mão, seja com folha pautada ou sulfite branca, vou ao delírio: é a demonstração máxima que o remetente se importa e não hesitou em gastar algum tempo elaborando um discurso de amor e amizade, no mimo feito com as próprias mãos.
Levo tão a sério esse assunto que guardo até hoje todos os bilhetes, cartas e cartões que recebi ao longo da vida. Herança da minha mãe, que também sempre gostou de acumular sentimentos dentro de caixas, para lembrá-los de vez em quando. 

      Se tratando de presentes, prefiro dar do que receber. Acho uma delicia e de certa forma desafiador procurar aquele livro antigo de edição limitada, ou então elaborar aquele passeio com direito a um jantar no restaurante preferido do presenteado. Gosto de surpreender as pessoas através dos presentes. Me faz um bem tão grande olhar fixamente nos olhos brilhando e nas mãos apressadas desembrulhando o pacote... Chego ao ponto alto do meu bem-estar quando o olhar brilhante dá lugar a um olhar surpreso, emocionado, agradecido.
Ah, eu também nunca esqueço do cartão. E não me atenho em escrever apenas meu nome, pelo contrário: escrevo meu sobrenome, como nos conhecemos e se bobear até faço poema.
E quando as reações de surpresa e felicidade são estimuladas pelo meu cartão, ai eu vou aos céus.

Nem bondade nem amor ao próximo: apenas um puro e simples egoismo altruísta. 

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Privacidade, individualismo e os limites da liberdade

           Para os nossos ideais de comunhão, ajuda mútua e coletividade, a personalidade do povo americano é um tanto perversa, já que a sociedade brasileira se desenvolveu em outros moldes. Os americanos são conhecidos por serem individualistas, egoístas, independentes e por levantarem a bandeira da privacidade. Já nós, brasileiros, aprendemos a dividir o pão, as roupas e o teto com os outros cinco irmãos. Aprendemos que onde come um come dois ou dez, não custa colocar mais alguns pratos na mesa e mais água no feijão. Não há motivos para ficar no quarto com a porta fechada. Não há segredos a esconder da família. É proibido ter privacidade.

           Com o passar dos anos, fui percebendo o quão individualista me tornei e o quanto prezo pela minha privacidade. Não estou estudando novos métodos de genocídio nem tenho ligação com sociedades secretas, mas não tente descobrir a senha do meu computador. Não tenho nenhum membro da Al-Qaeda adicionado no meu WhatsApp, mas não mexa no meu telefone. Detesto a visita de parentes distantes. Não gosto de emprestar objetos pessoais.

        Eu acreditava que não seria necessário impor limites a algo que deveria estar subentendido; entretanto há um descompasso entre o direito de ter privacidade e a liberdade do outro em abrir a sua geladeira e pegar um refrigerante. Aprendi que não existe subentendimento; é necessário se expressar deixando claro quais são os limites que não devem ser ultrapassados de forma a evitar ferir seu individualismo e privacidade. Difícil é colocar isso em pratica evitando ser rotulado de egoísta ou chato.

       Será por isso que os americanos são tao bem sucedidos? Será que há alguma analogia entre sucesso e individualismo? Não sei. Só sei que eu ficarei muito grata se antes de entrar no meu quarto eu ouvir ao menos três batidinhas na porta. Assim, de leve, mesmo que ela esteja aberta. Mesmo que eu esteja disponível. Mesmo que você tenha conquistado a liberdade de entrar na minha vida.









terça-feira, 16 de setembro de 2014

Dona Catarina

Tem gente que visita os avós só em datas comemorativas. Ou quando sente falta daquele bolo de fubá que, apesar de queimar um pouquinho embaixo, é muito mais gostoso do que o da mãe. Tem sabor de cumplicidade, de permissividade, de uma liberdade que a gente não tem em casa. Tem gente que visita os avós quando precisa de uma graninha. Gente mais velha ganha aposentadoria, não tem muitas ambições na vida e sempre guarda alguma coisa debaixo do colchão. Tem gente que visita os avós por pura insistência dos pais. Você precisa ir lá, menino, não vê sua avó desde que ela voltou do hospital. Não quero ir, mãe. Não gosto de gente velha. Velho só fala em doença ou conta histórias que não me interesso em saber. Isso quando não esquece parte da história e tudo fica sem pé nem cabeça.

Perdi meu avô quando eu tinha uns sete anos. Ele já estava caducando, com vários problemas de locomoção e diabetes. Partiu sereno, deixou de sofrer. Minha avó morreu um ano depois, por complicações no coração. Acredito que a depressão teve sua contribuição na morte prematura da Dona Catarina. Sessenta e quatro anos sofridos, apesar de bem vividos.

Nossa relação era engraçada; não era aquela relação de avó e netinha que a gente vê nas historias bonitinhas. Minha avó me tratava como uma pequena mulher, porque assim eu era: tinha uma inteligência e raciocínio acima da media, definitivamente muito diferente das crianças da minha idade. Chegava até a ser meio fria a nossa relação. Já com minha prima era diferente: chegávamos na casa da vó, minha prima recebia mil e um beijos e abraços quase desesperados. Ela era a pretinha da vó: pequena, frágil, bonitinha. Eu recebia um beijo singelo. Eu era a Catarina jovem, mas não queria aquele rótulo. Dona Catarina era forte demais, determinada demais, decidida demais, inteligente demais. Era uma responsabilidade enorme esse titulo, ainda mais para uma criança que queria apenas amor de vó. Só.
Aquilo me deixava meio triste, mas mesmo assim amava muito aquela mulher.

Minha avó ficou muito solitária depois que meu avô morreu. Por isso, eu ia todas as noites na casa dela fazer companhia. Assistíamos novela, falávamos sobre horóscopo, sobre o meu sobrinho que estava para nascer. "Será que ele vai ser de escorpião ou de virgem?" "Quem nasce em setembro é virgem, vó. Acho que é. O que a senhora acha?"
Filosofávamos. Como nutrir um amor pueril por uma criança que filosofa sobre quase qualquer coisa? Que devora enciclopédias? Impossível. Eu merecia um tratamento diferenciado. Eu era uma jovem adulta.

Eu ia por conta própria, a despeito da minha mãe, que ficava com ciúmes.
Imaginava como devia ser triste perder o companheiro de tantos anos e viver só numa casa tão grande. Casa essa que já presenciou grandes festas, anúncios de casamentos e de nascimentos; que já foi testemunha de tantas brincadeiras entre eu e minha prima; que já presenciou minha tia fazendo as pegadas do coelhinho da Páscoa na farinha.
Lembro dos nossos almoços. Amava o arroz parabolizado que ela fazia. Os bolinhos de arroz meio queimados. A mesa de frutas no Réveillon.

Sempre tive uma afeição incomum por pessoas mais velhas. Adotava os avós dos outros. Adorava ouvir as historias, os causos, olhar dentro dos olhos. Olhares tristes, olhares saudosos. Me perdia naqueles olhares.
Hoje o casarão da vó está diferente: parece bem menor do que eu via há quinze anos atrás.

Ela se foi e junto dela se foi a frieza para comigo, a personalidade forte, o arroz parabolizado e os bolinhos queimados. Foi-se também a mesa de frutas.
Ela se foi, e com ela minha infância.

Ela se foi, e levou consigo a Páscoa, o Réveillon, o Natal e todas as datas comemorativas.



segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Concerto numero 21

        Chegou em casa do trabalho, colocou as compras em cima da mesa, tirou os sapatos. Não havia ninguém em casa, e o único som que se ouvia era o canto dos pássaros de estimação: um papagaio e um canário belga. Sentou na poltrona. Respirou fundo e fechou os olhos, parecia que estava tentando achar conforto dentro dos seus pensamentos. Dia cheio, transito, verão intenso, correria. Esfregou as têmporas numa tentativa frustrada de aliviar a dor de cabeça tensional. Ficou assim por uns dois minutos, mas logo lembrou-se da sua válvula de escape: musica clássica.

       Esteban era um homem de meia idade, cabelos grisalhos, lisos. Filho de pai francês e mãe cubana, puxou os traços  paternos. Alto, caucasiano, sorriso gentil. Obcecado por arte, possui algumas réplicas  fiéis  de quadros de Boticelli e Rafael em sua sala. Seus CDs também entregam o seu gosto por musica clássica: costumava dormir ouvindo Mozart, na sala, a contragosto da mulher, que o esperava na cama. Piano concerto número  21. Ela odiava. Odiava porque sabia de cor cada nota dessa faixa do CD. Odiava porque era a sinfonia da sua solidão algumas noites na semana, quando o cansaço de Esteban era extremo e o impedia de subir as escadas em direção ao quarto do casal, tomar um banho e se deitar ao lado da mulher.
 
       Hoje o jantar seria feito por ele, que há três anos tornou-se vegetariano após assistir a um documentário sobre abatedouros e saúde bovina. Sua esposa estaria bebendo com algumas amigas, como faz religiosamente toda sexta-feira após o trabalho. Ela costuma chamar de happy hour; ele retruca dizendo que mulher não sabe fazer happy hour, e que homem sim, homem fala de futebol, xinga o chefe, comenta sobre os seios da garçonete. Mulher quando se junta reclama do marido, dos filhos, do preço do tomate, das rugas da fulana - que geralmente faz parte do grupo do happy hour, mas não pôde estar presente. Pobre fulana. Happy hour significa hora feliz em tradução literal, e mulher só sabe reclamar. Onde esta a felicidade ai? A hora feliz estava em casa, onde Esteban, sozinho, ouvia seus CDs enquanto cortava cebolas.
 
       Antônia casou-se com Esteban quando tinha vinte e seis anos. Filha de pai empresário e mãe fotógrafa, sempre foi muito mimada com presentes caros, viagens e tudo o que uma garota pode querer. Alguns dizem que os dois só deram certo porque Antônia tinha uma vivacidade adolescente, um espírito de aventura ausente em Esteban, que sempre planejou cada segundo da sua vida, que contava cada centavo antes de comprar o pão, que nunca ia dormir após as vinte e duas horas, que mantinha sua estante de livros organizada por assunto, ordem alfabética e ano de publicação. Outros dizem que foi o jeito que Esteban ri quando fica nervoso, mas que mesmo assim continua com os olhos fixos na pessoa, como se fosse uma tentativa de negar o nervosismo evidente. Era seu charme.
Antônia não era uma mulher de muito conhecimento artístico ou mesmo cientifico. Seu livro de cabeceira era uma bíblia, a qual nunca foi lida, mas que combinava com a mesinha de madeira do século dezoito, que ganhou do Marido quando se mudaram para uma casa maior.
 
       De certa forma, um completava o outro. Esteban ensinava Antônia a degustar bons vinhos, ensinava que não pode beber direto, existe um protocolo a ser seguido. Primeiro vem a análise visual, depois a análise olfativa e ai sim, por último, a análise gustativa. É quase um namoro. Antônia achava besteira, gostava mesmo era de ficar alta e brincar com a cara do marido, com suas esquisitices.
Antônia ensinava Esteban que para dançar salsa era preciso soltar os quadris, e ele era muito duro. Ele carregava Gómez no sobrenome, mas Dousseau falava mais alto. Esteban Gómez Dousseau. A salsa nunca foi com a cara dele e ele nunca fora com a cara da salsa. Preferia vinhos, como seu pai.
 
     Cogumelos, berinjelas recheadas com espinafre, abóbora assada e uma bela salada de tomates-cereja com alface. A mesa estava quase pronta. Garfo a direita do prato e faca a esquerda. Ajeita o segundo prato. Sim, há dois pratos na mesa, um de frente para o outro, milimetricamente alinhados. A cesta com frutas artificiais dá lugar a um vaso com lírios.
A campainha toca. Uma, duas vezes.
Esteban observa através do olho mágico. Um cara alto, loiro, esguio, camisa social preta e sapatos marrons o espera do outro lado da porta.
Esteban não atende. Volta, dá uma olhada no cabelo no espelho da sala de jantar. Olha para a mesa, percebe que o vaso de lírios não está  exatamente no centro. Ajeita o objeto. Pronto.
Atende a porta, com um sorriso largo, uma felicidade quase incontrolável.
O homem sorri e dá um abraço no anfitrião. Os dois entram.
 
       Rubens trabalha há seis anos no Centro de Pesquisas Arqueológicas na universidade que Esteban é professor. Amigos de colegial, ambos formaram-se em historia. Decidiram juntos o curso que fariam, contrariando a opinião de familiares e amigos próximos que os aconselhavam a seguir carreira jurídica. Ou engenharia. Engenheiro sim ganha muito dinheiro, é uma profissão de futuro. O mundo precisa de engenheiros para avançar. Quem precisa de historiador? Ou professor de historia? Ou mesmo arqueólogo? Quem vive de passado é museu, precisamos olhar pra frente, parar de sonhar com besteira. Esteban e Rubens morreriam de fome.
 
       Rubens elogia pela milésima vez o gosto de Esteban por arte. Rubens analisa de perto o quadro do nascimento de vênus, comenta sobre o estereotipo físico das mulheres do século quinze. Esteban concorda, enquanto serve ambos os pratos. Os dois sentam-se à mesa.
Falam sobre queijos, aquecimento global, o Triangulo das Bermudas, o comunismo, Nelson Mandela, Itália, o homem vitruviano. As berinjelas estão muito boas, e a mesa combinou muito bem com os lírios. Ambos terminam de comer.
Rubens se retira da mesa e vai em direção ao sofá. Se joga no móvel como se ele e o objeto fossem velhos conhecidos. Esteban acompanha o colega mas para no meio do caminho. Lembrou de um CD que ganhou de Antônia quando completaram dois anos de namoro. Que musicas insuportáveis. Guardava o CD dentro do ultimo livro da seção da letra S da sua estante, e só se atrevera a ouvi-lo na companhia de sua esposa quando ela insistia muito.
A musica começa a tocar. Rubens está sentado relaxadamente no sofá, ainda elogiando o jantar. Esteban puxa o amigo pelo braço, num convite forçado  para a dança.
Começam a dançar, juntos. Pés no mesmo ritmo, quadris remexendo harmoniosamente.
Parece que ambos foram feitos para a salsa.
 
       Depois de algumas horas entre danças, risadas e memórias da adolescência, os rapazes sobem para o quarto dos donos da casa, como fazem todas as sextas-feiras, quando Antonia sai para o happy hour com as amigas.
Já são quase onze horas, Antônia deve estar chegando. Dificilmente ela retorna após as onze horas. Não fica bem mulher casada voltar bêbada para casa, sozinha, após as onze horas.
Rubens vai embora. Despedem-se afetuosamente.
 
      Esteban retira a mesa, lava os pratos, joga os lírios fora. Resgata a cesta de frutas artificiais de dentro da dispensa. Cuidadosamente devolve à mesa de jantar o seu layout original.
Guarda o CD que ganhara da esposa no mesmo lugar. Letra S. Ultimo livro.
Tudo volta ao normal.
 
      Antônia chega em casa, mas tem dificuldade para abrir a porta. Depois de algumas cervejas e duas - ou talvez três? - doses de tequila a gente começa a ficar meio fora si. Acontece.
As luzes estão apagadas. No radio, Mozart. Piano concerto numero 21.
 
 
Esteban parece ter adormecido no sofá. Teve um dia cheio.
 
 
 
 
 
 

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Ciumegoista

      Ciúme é algo bonito quando observado com certa distância. Ciúme quando nos persegue vira algo dos infernos, uma supressão da nossa liberdade e um grito de insegurança. Ciúme quando acompanhado de egoísmo costuma ser fatal: mata aos poucos, lentamente, todo e qualquer relacionamento.
     Possuo inúmeros, incontáveis defeitos. Entre eles está  o ciúme egoísta que não permite dividir aqueles que amo. Não aceito a ideia de que meus amigos possuem outros amigos. Não aguento a ideia de que, nesse momento, estou aqui, ouvindo Maria Gadú, sozinha nesse quarto-cozinha, enquanto provavelmente meus amigos jogam conversa fora e saboreiam comida brasileira.
Não suporto saber que nos churrascos de domingo não estou lá pra ajudar minha mãe a fazer a maionese, ou  lamber a panela com o chocolate que ela fez para a torta de bolacha, mas minhas irmãs sim.
       Dói, uma dor fina e continua, como um espinho cravado no dedo, imaginar que a vida segue sem a minha presença. O sol continua nascendo por volta das seis e se pondo após as cinco de tarde. É inverno no Brasil, e meus cachorros brincam no tapete da sala como se nada estivesse fora do lugar. Minha mãe continua preparando o chimarrão das oito horas. Meu pai está viajando.
Não falo com as minhas irmãs faz um bocado de tempo, e está tudo bem. Cada uma no seu caos.
Não bastasse essa obsessão em ser onipresente, tenho ciúme de quem escreve, de quem canta, de quem dança, de quem tem covinhas quando sorri. Os Deuses me deram essas características e elas são minhas. Não faço nenhuma dessas coisas com primor, que fique claro; mas outra fêmea no meu circulo de amizades com esses predicados é  ameaçador: dá uma certa sensação de impotência, não sei explicar.
       Gosto de ser única, de ser lembrada, de estar presente. Se não fisicamente, em pensamento. Quero ser aquele sopro leve confundido como a brisa que anuncia a chegada do inverno. Quero ser traduzida em canção, quero provocar arrepios em que me ouve.
Esse ciúme egoísta é infantil, eu sei. Tento escondê-lo no fundo da caixinha que eu guardo no meu porão interno, mas às vezes nosso porão precisa de uma faxina, senão morremos sufocados por sentimentos velhos e inúteis. E é aí então que meu ciúme-egoísta dá o ar da graça.
      Estou tentando lidar com isso da melhor forma possível, tentando aceitar que eu preciso ser menos (bem menos) ególatra, afinal, o mundo não gira em torno dos meus caprichos.
 
      Às vezes acho que sei lidar. Às vezes me distancio de mim mesma, observo minha obsessão, meu egoísmo fatal. Às vezes apenas brinco com as situações, engulo em seco, e bola pra frente. Será?
 
      A vida segue, sim, seu curso normal. Minha família vive. Meus amigos vivem. Amigos de amigos saem com outros amigos, que por coincidência são meus amigos também. Meus cachorros talvez sintam meu cheiro próximo ao meu quarto, e lembrem um pouquinho de mim; ou talvez minha mãe tenha lavado minhas roupas, meus lençóis, meus cobertores, e o que reste na casa seja apenas um agradável aroma de amaciante. Tanto faz.
 
"Não valem dramáticos efeitos
Mas o que está depois
Não vamos fuçar nossos defeitos
Cravar sobre o peito as unhas do rancor
Lutemos mas só pelo direito
Ao nosso estranho amor"
 
Maria Gadú, Caetaneando nos meus ouvidos, me faz colocar um ponto final nesse autoflagelamento: parei de fuçar os meus defeitos.
 
Vou ligar pra minha mãe e perguntar logo da falta que estou fazendo.
 

domingo, 3 de agosto de 2014

Despedida

Sai, não diz aonde,
segue o horizonte,
parte meu coração

esquece meu nome,
devolvo teu sobrenome,
enterro o nosso caixão










A metáfora da areia

Nada explica tão bem a difícil arte de se relacionar quanto a metáfora da areia.
Experimente pegar um pouco de areia e fechar a mão com força. Quanto mais forte você apertar a areia em suas mãos, com mais velocidade ela escapará por entre seus dedos.
Agora, experimente abrir completamente a mão. Provavelmente o vento limpará completamente a areia que você estiver segurando. Entretanto, tente deixar a mão semiaberta, como se fosse uma colher; bastante fechada para protegê-la e bastante aberta para lhe dar liberdade. A areia permanecerá.
Arrisco dizer que é assim que se faz durar um amor.
O amor não sufoca, não reprime, não intimida. O amor deixa o caminho livre. Livre o suficiente para dar leveza à vida e beleza ao relacionamento, mas não livre a ponto de outro vento levar a sua areia.
O vento não é traiçoeiro; apenas livra você de algo que você já não se importa mais.
Afinal, se a mão está aberta o suficiente para deixar o vento agir, deve estar aberta o suficiente para levantar e dizer adeus.


domingo, 13 de julho de 2014

Sobre o abraço

    Já parou para pensar em quantas palavras cabem num abraço? Quantos beijos podem ser trocados sem sequer as bocas se tocarem, apenas através do pulsar do coração quente contra outro peito no mesmo ritmo?

    Existe uma crônica do Mário Prata onde o autor arrisca dizer que o abraço surgiu na Itália, como forma da máfia italiana "apalpar" o inimigo para se certificar que o mesmo não dispunha de nenhuma arma em seu corpo. A crônica menciona também o fato curioso de os japoneses dificilmente abraçarem alguém, e afirma ser cultural: lá, o espadachim estava sempre à vista, então eles se curvavam para baixo para ver até onde ia a adaga.

    O Brasil é conhecido mundialmente por ser um país onde as pessoas são calorosas e receptivas, e onde é social e culturalmente aceito abraçar em público e demonstrar carinho por quem gostamos; entretanto, esse predicado não funciona da mesma forma quando analisamos outras culturas. Os americanos, por exemplo, acham o cúmulo abraçar e beijar alguém em público. Para eles, o beijo e o abraço são demonstrações muito íntimas de afeto e não devem ser feitas sob os olhos das outras pessoas, e quando abraçam um amigo, o carinho se resume a três míseros tapinhas nas costas; por outro lado, consideram perfeitamente normal simular sexo no meio da pista de dança ou ter relações sexuais com alguém que acabaram de conhecer.
Os japoneses são ainda mais frios: dificilmente abraçam seus pais e familiares, e não costumam demonstrar carinho pelos amigos ou entes queridos. Com os árabes, a situação fica ainda pior: se você é homem, nem ouse tentar apertar a mão de uma muçulmana: além de deixá-la muito constrangida, se a tentativa de aperto de mão vir acompanhada de um contato visual direto, você será considerado extremamente desrespeitoso.

   Pesquisadores afirmam que abraçar alguém que você gosta alivia o estresse e a ansiedade. Não precisa ter estudado em Harvard ou pesquisado durante anos para comprovar por experiência própria que os resultados da pesquisa são condizentes. Pelo menos pra mim.

    Depois de conviver um pouquinho com cada cultura aqui nos Estados Unidos posso afirmar que fico muito feliz de ter nascido brasileira, com liberdade e aceitação social para poder abraçar quem, como e onde eu quiser. Não consigo imaginar a minha vida sem abraços. Provavelmente eu ficaria doente. Seria uma pessoa apática e menos feliz.

   Eu gosto de abraço, mas não é qualquer abraço; é aquele que envolve o corpo e a alma; aquele abraço que você consegue medir a temperatura do corpo da outra pessoa, só no tocar; é aquele abraço que você sente o coração do outro bater contra o seu, até o ponto em que ambos começam a bater no mesmo ritmo e vocês passam a ser um só. Porque abraço é isso: uma união de tristezas, incertezas, alegrias e desabafos; é você preencher as lacunas da sua alma e parar o mundo por alguns segundos; deixar de ser você e passar a ser uma mistura de braços, dedos, calores, perfumes, respirações.

    Costumo dizer que não confio em quem não me olha nos olhos, mas que confio menos ainda em quem não me abraça apertado. O abraço para valer a pena tem que ser forte, te deixar sem palavras, te faltar a respiração.

Já dizia Fabrício Carpinejar:

"(...) Abraço tem que ter pegada, jeito, curva. Aperto suave, que pode virar colo. Alento tenso, que pode virar despedida.

É pelo abraço que testo o caráter do outro. Não confio em quem logo dá tapinhas nas costas. A rapidez dos toques indica a maldade da criatura.

Não sou porta para bater. Nem madeira para espantar azar.
Abraço com toquinho é hipócrita. É abraço de Judas. De traidor. O sujeito mal encosta a pele e quer se afastar. Pede espaço porque não suporta os pecados dos pensamentos (...)"           Nesse caso, sou toda ele. E digo mais: pobre dos que não abraçam: estão morrendo aos poucos e perdendo sua essência. 

Diferenças culturais à parte, o abraço ainda é algo intraduzível. É a língua que mais diz sem dizer nada, seja aqui ou em qualquer lugar do mundo. É uma liberdade compartilhada, onde fugimos de nós mesmos e das nossas opressões. Mas é uma liberdade que prende, que sufoca de forma boa, de forma leve, que afaga.


Antes na prisão livre do abraço do que na liberdade presa que impede de abraçar.











sábado, 5 de julho de 2014

Verões

Verão no Brasil é engraçado.
Existe uma crônica do Luis Fernando Veríssimo que é simplesmente genial: descreve exatamente como são os dias à beira-mar da população de classe média baixa no Brasil, no auge do verão. Me identifiquei muito, e o texto sempre me arranca risos.
Eu nasci no Rio Grande do Sul, onde a água é congelante, o vento despenteia qualquer tipo de cabelo (o famoso "nordestão") e as pessoas vão à praia religiosamente todo santo verão (que é a única época do ano onde faz sol de verdade e dá pra entrar na água sem sair com hipotermia). O mar no Rio Grande do Sul é escuro, efeito de uma proliferação de algas na região - o que acaba tornando as praias gaúchas nem um pouco atrativas.
Outro aspecto do verão no sul é o calor infernal. E quando digo infernal, não estou exagerando. Não é um calor gostoso, um sol que aquece e conforta; é um sol que quer que você tenha queimaduras de terceiro grau. É um sol cruel, que deixa os menos desprovidos de melanina vermelhos igual a um camarão.
Viver a rotina de trabalhador/estudante no verão é complicado. Ainda mais se necessitarmos do transporte público, que além de viver lotado e não ter ar-condicionado, faz você ter a real sensação do que é estar no inferno. Pergunte aos gaúchos: é uma miscelânea de odores de todos os tipos e intensidades, que te faz querer descer três paradas antes da sua, só para não regurgitar dentro do ônibus e piorar ainda mais a situação.
Outro fato peculiar do verão no sul é o nosso chimarrão no parque. A sensação térmica é de aproximadamente 50 graus, e a água do chimarrão é quente. "Pelando". Como conseguimos? Boa pergunta. É um hábito que eu gosto bastante: reunir os amigos no Parque da Redenção para conversar e tomar chimarrão, até queimar o estômago.
Estou nos Estados Unidos há pouco mais de duas semanas, na agradável cidade de Portland, no oeste do país. Eu cheguei e trouxe o verão, mas posso dizer que estou me surpreendendo. Apesar do estado do Oregon ter a fama de ser um local com um clima chuvoso e desagradável, viver aqui está me fazendo gostar do sol e do calor.
Primeiramente, a cidade é cheia de parques, de todos os tipos e tamanhos. E flores. E fontes. E parques. E mais fontes.
O calor daqui é um calor seco, porém agradável: dá vontade de sair por ai com o sol no rosto, admirando o desenho que as nuvens formam no céu; dá vontade de deitar na grama e só levantar quando sol se põe - que, para minha alegria, é tarde pra caramba; dá vontade de não ficar em casa, mesmo com tantos homeworks e houseworks para serem feitos.
O sistema de transporte de Portland é invejável. A cidade tem uma ótima infraestrutura e as bicicletas dominam as ruas. É muito acessível se locomover de um canto a outro, e dificilmente os transportes públicos estão lotados, com pessoas saindo pela janela. Além disso, todos têm ar-condicionado e bancos confortáveis. Já a questão dos odores... Acho que é um assunto a ser tratado a nível mundial.
No momento estou num relacionamento sério com o verão de Portland. Com o clima de Portland. Com os lugares de Portland.
Tenho medo do que vai ser de mim quando for a hora de voltar pra casa: chegar no aeroporto, pegar o aeromóvel até o trem, onde com certeza não terei lugar para sentar e ficarei tentando me equilibrar com o peso de duas malas e aguentar o sutil calor de setembro que te faz querer desesperadamente voltar para junho. Mas tudo tem seu lado bom: já estarei pronta novamente pra roda de chimarrão na Redenção, rodeada dos amigos que eu tanto sinto falta. Nesse caso, o calor infernal desempenha habilmente seu papel de unir as pessoas que compartilham das mesmas opiniões sobre o nosso verão, as que mesmo assim não deixam de se banhar nas águas marrons de Cidreira depois de horas dentro de um ônibus capenga.

terça-feira, 1 de julho de 2014

Solidão

Sinto que estou adoecendo,
deve ser do coração
sinto nada e sinto tudo:
sintomas de solidão

Um estar junto e estar só
Uma procura sem sucesso
As vozes ao redor, sem sentido
No meu peito, vazio, fazem eco

Vou juntando meus pedaços
e tentando me encaixar
nada mais tem importância
Só preciso me curar

Estou tentando me encontrar
de novo a cada amanhecer
Mas como vou me encontrar
Se o que eu quero é me perder?


terça-feira, 6 de maio de 2014

Sofrimento Antecipado Agudo

Sofro de uma doença diagnosticada pela medicina convencional como Ansiedade. Tomei a liberdade de inventar um nome mais clínico, para enfatizar a sua gravidade: Sofrimento Antecipado Agudo. Esta doença ataca o sistema nervoso, respiratório e em muitos casos, a alma. Os sintomas mais comuns dos acometidos por essa enfermidade são: ansiedade incontrolável, imaginação fértil e pouca fé - e quando falo de pouca fé não estou dando conotação religiosa às causas da minha doença.
Não sei precisar desde quando sofro deste mal, mas posso garantir que a automedicação que venho fazendo ao longo dos anos não está adiantando. Minha automedicação? Um mantra vagabundo, que eu mesma criei: "vai dar certo, vai dar certo, tem que dar certo" (repete três vezes ao dia, ou quando sentir necessidade; não tem efeitos colaterais comprovados).
O problema ainda não existe, é apenas um monstro, alimentado, agasalhado, educado e criado pela minha imaginação, essa fazedora de histórias e situações absurdas; mas cá estou eu, cogitando as mais pessimistas possibilidades, prevendo os mais obscuros acontecimentos e roendo cada milímetro de unha que ainda resta nas minhas mãos nada femininas.
Está tudo calmo, nada aconteceu, a vida segue o fluxo normal, sem surpresas ou grandes desafios. Mas dentro de mim está tudo desabando: "não vou conseguir" "isso vai dar errado" "o que vai ser da minha vida se isso acontecer?" são frases recorrentes dentro da minha cabeça.
Não quero ter que recorrer à medicina convencional e aos amigos da tarja preta para frear minha ansiedade e esse sofrimento precoce. Mas e se eu tiver que procurar um médico? E se isso for grave? Ansiedade mata? Não não, quer dizer, Sofrimento Antecipado Agudo mata? Se alguém conhecer um caso verídico de uma pessoa que definhou dia após dia até morrer devido a uma ansiedade incontrolável, impulsionada pela falta de fé e uma imaginação fértil, por favor, me diga. Pode ligar na minha casa, bater à minha porta de madrugada. Preciso saber se vou morrer. Não posso morrer.
E se eu morrer?

domingo, 27 de abril de 2014

Relacionamentos

Sempre acreditei (e comprei) a ideia de que as pessoas não buscavam alguém para completá-las num relacionamento, e sim queriam um espelho, um reflexo de si mesmas. Quando pensamos no par ideal logo associamos o indivíduo aos nossos gostos pessoais: se gostamos de praia, procuraremos alguém que também goste de praia; assim, poderemos desfrutar de um prazer em comum. Se gostamos de Heavy Metal, vai ser difícil conciliar a paixão do outro pela calmaria da Bossa Nova.
Pelo menos era o que eu pensava.
Porém, o que tenho visto por ai são casais cujos indivíduos têm pouquíssimos gostos em comum, e em alguns casos, um é completamente diferente no outro no quesito estilo, personalidade e inteligência.
Aí eu me questiono: como pode dar certo um relacionamento assim?
A fisica explica a famigerada frase "os opostos se atraem". Charles Augustin de Coloumb desmistificou essa minha teoria há mais de duzentos anos atrás, quando formulou a Lei de Coloumb. Entretanto eu sempre quis ir contra as leis da fisica e acreditar que para um relacionamento dar certo seria necessário compartilhar dos mesmos gostos, vontades e, por que não, personalidade.
Talvez isso fosse verdade se estivéssemos procurando um... amigo. Nossos amigos sim se parecem conosco. No quesito relacionamento amoroso as coisas não parecem funcionar como eu pensava.
Minha imaginação brinca de trocar os casais que conheço, e posso garantir que 90% deles estão inclusos nessa troca.
Se existisse uma explicação lógica para o amor, minha teoria poderia ser patenteada. Mas o amor é irracional; não escolhe o homem de barba por fazer e barriga tanquinho, nem a mulher de olhos verdes e sorriso largo. O amor não seleciona por gosto musical ou culinário. O amor simplesmente acontece.
Ainda não satisfeita, descobri uma crônica do jornalista Arnaldo Jabor, intitulada "Crônica do Amor". O melhor trecho: 
"Ninguém ama a outra pessoa porque ela é educada, veste-se bem e é fã do Caetano. Isso são só referenciais. Ama-se pelo cheiro, pelo mistério, pela paz que o outro lhe dá, ou pelo tormento que provoca. Ama-se pelo tom de voz, pela maneira que os olhos piscam, pela fragilidade que se revela quando menos se espera."
Deve ser isso mesmo e toda aquela história que sempre ouvimos sobre alma gêmea seja uma mentira bonita. Afinal, não é o fim do mundo se ele gostar de correr na praia ouvindo Black Sabbath e você de relaxar na sua casa ao som de Maysa. Todos precisam ter seu espaço, caso contrário a vida a dois fica algo sufocante. E aí, caro amigo, não há amor que sustente.

domingo, 16 de março de 2014

Reticências das reticências

Quero pensar, de fato
que as reticências das reticências,
são usadas para enganar
àqueles com o saber nato
que devoram literaturas
aos amantes da leitura
Que apenas sabem julgar

Julgar a ortografia,
as frases pós-modernas
sem pontos, vírgulas, espaços
daqueles que criam poesia
sem rima, acento, magia
apenas com displicência 
desapego e fortes traços

E que belas são as reticências
objeto deste poema
nunca completam a sentença
misteriosas, hesitantes,
deixam no ar por instantes:
enrolação é o seu lema

E há aqueles que abrilhantaram
sua feliz concepção:
terminam a frase de um jeito
pitoresco, de efeito:
multiplicaram a pontuação

Pra você que pensa muito,
muito escreve e muito lê
vocabulário impecável
finge não ver o que vê
Se você é especialista
não julgue um modernista
que escreve, mas não lê.................................................................................







quarta-feira, 12 de março de 2014

O tempo não para

Acordo, já é tarde
O sono roubou o meu tempo
O sol lá fora arde
Mas meu corpo é desalento

Sigo ansiando descanso
Pernas pro ar, ócio
Por um sono tranquilo, manso
Topo qualquer negócio

O sábado se aproxima
Tempo livre, que alegria!
Viver num tempo tão curto
Não tem a beleza da rima

Acordei, de supetão
com idade avançada
não é forte o coração
estou velha e cansada

Sobrevivi a vida inteira
Trabalhei, ganhei meu pão
Percebi que não fiz nada:
Minha vida foi em vão

Hoje choro baixinho
Lamentando o que não fiz
Não viajei, mas fiz poupança
E hoje estou na riqueza
Mergulhada na tristeza:
Deveria ter sido feliz


segunda-feira, 10 de março de 2014

Sobre mulheres e flores

Diz o escritor Luís Fernando Veríssimo que "mulher que não recebe flores murcha rapidamente e adquire traços masculinos como rispidez e brutalidade". Esta frase faz parte de uma das dezenas de crônicas atribuídas a ele. De sua autoria ou não, não concordo com a sentença.
Mulher murcha rapidamente por não ser reconhecida em seu ambiente de trabalho; por desempenhar funções equivalentes as do sexo masculino e ganhar absurdamente menos.
Mulher murcha rapidamente ao se dedicar interruptamente às funções de mãe, esposa, amante, mulher e amiga e não ser notada: fazer tudo é muito pouco, afinal mulher é pau para toda obra.
Mulher adquire traços de rispidez e brutalidade ao sentir na pele a violência doméstica, ser estuprada física e moralmente pelo companheiro por quem jurou amar na saúde e na doença. E essa doença tem nome: machismo. Está entranhada nas vísceras e neurônios. Não há mais amor.
Mulher adquire traços de rispidez e brutalidade ao se sentir invadida, violada, constrangida ao ir tomar um sorvete no shopping e ouvir as frases mais grotescas que um homem pode proferir. Está calor. Suas pernas estão à mostra. E você é uma vadiazinha que não sairia assim na rua se não quisesse chamar a atenção.
Amo flores, de verdade, mas não faço questão em ganhá-las.
Sempre preferi meia dúzia de margaridas arrancadas de algum quintal do que rosas vermelhas envoltas em papel selofane: tudo muito prosaico e mecânico.
Nas datas comemorativas em que a mulher é o foco, as rosas (vermelhas) tomam conta do comércio. Não precisa pensar em nada mais original, afinal, qual a mulher que não se derrete ao receber um belo buquê de flores? 
Eu me derreto com gente educada. Gente de caráter. Pessoas que reconhecem o meu trabalho, respeitam minhas pernas de fora, que não insistem em me fazer engolir goela abaixo cantadas ofensivas e de baixo calão.

Respeite meus direitos, minhas vontades, meu corpo.
O fato de eu ter um útero não me torna mais ou menos digna do que qualquer ser humano. Não banque o ridículo (a) com um discurso sexista e opressor.

Amo flores, de verdade, mas não faço questão em ganhá-las. 
A não ser que seja meia dúzia de margaridas arrancadas de algum quintal.

O presente mais original nos dias de hoje é o respeito. Dê-me em abundância.


terça-feira, 4 de março de 2014

Carta a um amigo

"Eu não posso acabar com todos os seus problemas, dúvidas ou medos, mas posso ouvir você, e juntos podemos procurar soluções.
Eu não posso apagar as mágoas e as dores do seu passado, nem decidir qual será o seu futuro, mas no presente posso estar com você, se precisares de mim.
Eu não posso impedir que você leve tombos, mas posso oferecer minha mão para você agarrar e levantar-se. Suas alegrias, triunfos e sucessos não me pertencem, mas seus risos e sorrisos fazem parte dos meus maiores bens.
Não é de minha alçada tomar decisões por você, nem julgar as decisões que você toma; mas posso te apoiar, encorajar e ajudar, se me pedir.
Eu não posso traçar ou impor limites, mas posso apontar caminhos alternativos, procurar com você medidas de crescimento, formas de encontrar-se, meios de ser você mesmo.
Eu não posso salvar o seu coração de ser partido pela dor, pela mágoa, perda ou tristeza, mas posso chorar com você, e ajudá-lo a juntar os pedaços.
Eu não posso dizer quem você é ou como deveria ser. Simplesmente posso te amar, apenas te amar, e te chamar de amigo"


Vera Severo

domingo, 2 de março de 2014

Carnaval

Eu e minha prima, carnaval de 1998.
Minha família tinha uma tradição no carnaval: levar as crianças para o carnaval infantil, de clube. Ah, como era bom. Era algo sagrado, inviolável. Todos os anos o protocolo era seguido à risca e não havia imprevisto que nos impedisse de aproveitar esta época do ano. "Mas a vó não está se sentindo muito bem, sabe. Acho melhor ela não ir" "pois que vá adoentada mesmo. Não há marchinha que não cure as enfermidades do corpo, nem da alma". E íamos, felizes: eu, minha mãe, minha irmã, meus tios, minha prima e meus avós.
A preparação para a festa começava na semana anterior. Minha prima, mais abastada, ganhava as mais diversas fantasias, ano após ano: bailarina, odalisca, dálmata (sim, o cachorro com as pintinhas do filme da Disney). Já eu, utilizava dos recursos disponíveis para improvisar uma fantasia, e minha mãe era fera nisso. Eu ia de qualquer coisa, não importava, desde que eu fosse. Mas, confesso que eu tinha minhas preferências: as dançarinas rebolativas do extinto grupo É o Tchan. Eu sempre era a loira, se tratando do carnaval ou de qualquer outra brincadeira envolvendo as danças do grupo.
Lá no clube, eu me acabava. Minha felicidade era evidente, afinal era carnaval, oras! A época mais alegre do ano. Minha família procurava uma mesa mais próxima da pista possível, para olhar as crianças e impedir que as pestes fugissem do campo de visão.
Eu e minha prima vivíamos numa relação de amor e ódio. Mas na pista de dança éramos só felicidade, embaladas por É o Tchan e as mais diversas letras de axé da época.
Geralmente retornávamos pra casa por volta das 20hs, e o fato de a noite já ter caído me dava um prazer imenso: eu estava num clube, e já era noite. Me sentia adulta, madura, voltando de uma festa.
Com o passar dos anos, minha família que já era pequena, foi diminuindo gradativamente. Entes queridos foram embora, agregados já não fazem mais parte do clã e as idas ao clube foram ficando escassas, até que o ritual carnavalesco de todos os anos deixou de existir.

Hoje em dia, detesto o carnaval. Não existe mais o brilho de outrora, as coisas não são mais tão fáceis e a ingenuidade é efêmera: vai se perdendo conforme vamos crescendo, incorporando responsabilidades e deixando de ser criança. Dia desses estava comentando com uma amiga a respeito das letras de duplo sentido que embalavam nossa diversão. Confesso que, até hoje não sei o que significa "segurar o tchan".
Lembro com saudade daquele tempo, onde eu não tinha muito, mais tinha uma família linda, e isso era tudo. Hoje, já não vejo nada de mais em voltar no outro dia de uma festa. Detesto ser adulta: não consigo levar a vida com leveza e ver graça nas coisas simples.  
Crescer é, sem dúvida, a coisa mais chata de toda a nossa existência. E essa chatisse crônica, doença contemporânea, não há marchinha que cure.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

I'm back!

Cá estou eu novamente, numa vontade irrefreável de escrever, colocar tudo pra fora, compartilhar um pouco desse turbilhão de pensamentos que insistem em me perseguir.
Sempre amei escrever, e faço isso desde criança. Tive diários, escrevi cartas para minha mãe, arrisquei-me a redigir uma peça na quinta série - a qual eu era também a protagonista - e um pouco mais tarde, num impulso audacioso, criei um blog. Tornar público boa parte de mim foi um desafio, afinal eu estaria ali: com mente e alma desnudas, alvo da análise e julgamento de outras pessoas.
Não durou muito. O cotidiano e a rotina caótica de trabalhar durante o dia e estudar à noite me afastaram desse prazer, o prazer da escrita, até que o blog, aos poucos, foi morrendo. Não foi desistência, e sim um acontecimento providencial. Entretanto, continuei com as minhas inquietações, meus delírios e claro: com a vontade irresistível de voltar a escrever.
Pois bem. Sou taurina, e como toda boa taurina sou também teimosa. Por isso, criei novamente um blog e pretendo escrever sobre os mais variados assuntos, dissertar sobre o tempo, o vento, a vida e a morte, sem amarras ou hipocrisias.
Não dou a certeza de que todos os dias postarei algo, pois a minha rotina continua caótica e eu avisei: sou taurina, e como boa taurina sou também a personificação da preguiça. Porém, não pretendo deixar este blog morrer, afinal, sempre que enxergo um escritor em potencial - amigos, colegas e afins - dou um jeito de incentivar este talento, porque escrever é o máximo. Então, não há motivos para desistir. Lembrando que: sou taurina, e desistir não é um dos predicados dos nativos deste signo.