quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Privacidade, individualismo e os limites da liberdade

           Para os nossos ideais de comunhão, ajuda mútua e coletividade, a personalidade do povo americano é um tanto perversa, já que a sociedade brasileira se desenvolveu em outros moldes. Os americanos são conhecidos por serem individualistas, egoístas, independentes e por levantarem a bandeira da privacidade. Já nós, brasileiros, aprendemos a dividir o pão, as roupas e o teto com os outros cinco irmãos. Aprendemos que onde come um come dois ou dez, não custa colocar mais alguns pratos na mesa e mais água no feijão. Não há motivos para ficar no quarto com a porta fechada. Não há segredos a esconder da família. É proibido ter privacidade.

           Com o passar dos anos, fui percebendo o quão individualista me tornei e o quanto prezo pela minha privacidade. Não estou estudando novos métodos de genocídio nem tenho ligação com sociedades secretas, mas não tente descobrir a senha do meu computador. Não tenho nenhum membro da Al-Qaeda adicionado no meu WhatsApp, mas não mexa no meu telefone. Detesto a visita de parentes distantes. Não gosto de emprestar objetos pessoais.

        Eu acreditava que não seria necessário impor limites a algo que deveria estar subentendido; entretanto há um descompasso entre o direito de ter privacidade e a liberdade do outro em abrir a sua geladeira e pegar um refrigerante. Aprendi que não existe subentendimento; é necessário se expressar deixando claro quais são os limites que não devem ser ultrapassados de forma a evitar ferir seu individualismo e privacidade. Difícil é colocar isso em pratica evitando ser rotulado de egoísta ou chato.

       Será por isso que os americanos são tao bem sucedidos? Será que há alguma analogia entre sucesso e individualismo? Não sei. Só sei que eu ficarei muito grata se antes de entrar no meu quarto eu ouvir ao menos três batidinhas na porta. Assim, de leve, mesmo que ela esteja aberta. Mesmo que eu esteja disponível. Mesmo que você tenha conquistado a liberdade de entrar na minha vida.









terça-feira, 16 de setembro de 2014

Dona Catarina

Tem gente que visita os avós só em datas comemorativas. Ou quando sente falta daquele bolo de fubá que, apesar de queimar um pouquinho embaixo, é muito mais gostoso do que o da mãe. Tem sabor de cumplicidade, de permissividade, de uma liberdade que a gente não tem em casa. Tem gente que visita os avós quando precisa de uma graninha. Gente mais velha ganha aposentadoria, não tem muitas ambições na vida e sempre guarda alguma coisa debaixo do colchão. Tem gente que visita os avós por pura insistência dos pais. Você precisa ir lá, menino, não vê sua avó desde que ela voltou do hospital. Não quero ir, mãe. Não gosto de gente velha. Velho só fala em doença ou conta histórias que não me interesso em saber. Isso quando não esquece parte da história e tudo fica sem pé nem cabeça.

Perdi meu avô quando eu tinha uns sete anos. Ele já estava caducando, com vários problemas de locomoção e diabetes. Partiu sereno, deixou de sofrer. Minha avó morreu um ano depois, por complicações no coração. Acredito que a depressão teve sua contribuição na morte prematura da Dona Catarina. Sessenta e quatro anos sofridos, apesar de bem vividos.

Nossa relação era engraçada; não era aquela relação de avó e netinha que a gente vê nas historias bonitinhas. Minha avó me tratava como uma pequena mulher, porque assim eu era: tinha uma inteligência e raciocínio acima da media, definitivamente muito diferente das crianças da minha idade. Chegava até a ser meio fria a nossa relação. Já com minha prima era diferente: chegávamos na casa da vó, minha prima recebia mil e um beijos e abraços quase desesperados. Ela era a pretinha da vó: pequena, frágil, bonitinha. Eu recebia um beijo singelo. Eu era a Catarina jovem, mas não queria aquele rótulo. Dona Catarina era forte demais, determinada demais, decidida demais, inteligente demais. Era uma responsabilidade enorme esse titulo, ainda mais para uma criança que queria apenas amor de vó. Só.
Aquilo me deixava meio triste, mas mesmo assim amava muito aquela mulher.

Minha avó ficou muito solitária depois que meu avô morreu. Por isso, eu ia todas as noites na casa dela fazer companhia. Assistíamos novela, falávamos sobre horóscopo, sobre o meu sobrinho que estava para nascer. "Será que ele vai ser de escorpião ou de virgem?" "Quem nasce em setembro é virgem, vó. Acho que é. O que a senhora acha?"
Filosofávamos. Como nutrir um amor pueril por uma criança que filosofa sobre quase qualquer coisa? Que devora enciclopédias? Impossível. Eu merecia um tratamento diferenciado. Eu era uma jovem adulta.

Eu ia por conta própria, a despeito da minha mãe, que ficava com ciúmes.
Imaginava como devia ser triste perder o companheiro de tantos anos e viver só numa casa tão grande. Casa essa que já presenciou grandes festas, anúncios de casamentos e de nascimentos; que já foi testemunha de tantas brincadeiras entre eu e minha prima; que já presenciou minha tia fazendo as pegadas do coelhinho da Páscoa na farinha.
Lembro dos nossos almoços. Amava o arroz parabolizado que ela fazia. Os bolinhos de arroz meio queimados. A mesa de frutas no Réveillon.

Sempre tive uma afeição incomum por pessoas mais velhas. Adotava os avós dos outros. Adorava ouvir as historias, os causos, olhar dentro dos olhos. Olhares tristes, olhares saudosos. Me perdia naqueles olhares.
Hoje o casarão da vó está diferente: parece bem menor do que eu via há quinze anos atrás.

Ela se foi e junto dela se foi a frieza para comigo, a personalidade forte, o arroz parabolizado e os bolinhos queimados. Foi-se também a mesa de frutas.
Ela se foi, e com ela minha infância.

Ela se foi, e levou consigo a Páscoa, o Réveillon, o Natal e todas as datas comemorativas.



segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Concerto numero 21

        Chegou em casa do trabalho, colocou as compras em cima da mesa, tirou os sapatos. Não havia ninguém em casa, e o único som que se ouvia era o canto dos pássaros de estimação: um papagaio e um canário belga. Sentou na poltrona. Respirou fundo e fechou os olhos, parecia que estava tentando achar conforto dentro dos seus pensamentos. Dia cheio, transito, verão intenso, correria. Esfregou as têmporas numa tentativa frustrada de aliviar a dor de cabeça tensional. Ficou assim por uns dois minutos, mas logo lembrou-se da sua válvula de escape: musica clássica.

       Esteban era um homem de meia idade, cabelos grisalhos, lisos. Filho de pai francês e mãe cubana, puxou os traços  paternos. Alto, caucasiano, sorriso gentil. Obcecado por arte, possui algumas réplicas  fiéis  de quadros de Boticelli e Rafael em sua sala. Seus CDs também entregam o seu gosto por musica clássica: costumava dormir ouvindo Mozart, na sala, a contragosto da mulher, que o esperava na cama. Piano concerto número  21. Ela odiava. Odiava porque sabia de cor cada nota dessa faixa do CD. Odiava porque era a sinfonia da sua solidão algumas noites na semana, quando o cansaço de Esteban era extremo e o impedia de subir as escadas em direção ao quarto do casal, tomar um banho e se deitar ao lado da mulher.
 
       Hoje o jantar seria feito por ele, que há três anos tornou-se vegetariano após assistir a um documentário sobre abatedouros e saúde bovina. Sua esposa estaria bebendo com algumas amigas, como faz religiosamente toda sexta-feira após o trabalho. Ela costuma chamar de happy hour; ele retruca dizendo que mulher não sabe fazer happy hour, e que homem sim, homem fala de futebol, xinga o chefe, comenta sobre os seios da garçonete. Mulher quando se junta reclama do marido, dos filhos, do preço do tomate, das rugas da fulana - que geralmente faz parte do grupo do happy hour, mas não pôde estar presente. Pobre fulana. Happy hour significa hora feliz em tradução literal, e mulher só sabe reclamar. Onde esta a felicidade ai? A hora feliz estava em casa, onde Esteban, sozinho, ouvia seus CDs enquanto cortava cebolas.
 
       Antônia casou-se com Esteban quando tinha vinte e seis anos. Filha de pai empresário e mãe fotógrafa, sempre foi muito mimada com presentes caros, viagens e tudo o que uma garota pode querer. Alguns dizem que os dois só deram certo porque Antônia tinha uma vivacidade adolescente, um espírito de aventura ausente em Esteban, que sempre planejou cada segundo da sua vida, que contava cada centavo antes de comprar o pão, que nunca ia dormir após as vinte e duas horas, que mantinha sua estante de livros organizada por assunto, ordem alfabética e ano de publicação. Outros dizem que foi o jeito que Esteban ri quando fica nervoso, mas que mesmo assim continua com os olhos fixos na pessoa, como se fosse uma tentativa de negar o nervosismo evidente. Era seu charme.
Antônia não era uma mulher de muito conhecimento artístico ou mesmo cientifico. Seu livro de cabeceira era uma bíblia, a qual nunca foi lida, mas que combinava com a mesinha de madeira do século dezoito, que ganhou do Marido quando se mudaram para uma casa maior.
 
       De certa forma, um completava o outro. Esteban ensinava Antônia a degustar bons vinhos, ensinava que não pode beber direto, existe um protocolo a ser seguido. Primeiro vem a análise visual, depois a análise olfativa e ai sim, por último, a análise gustativa. É quase um namoro. Antônia achava besteira, gostava mesmo era de ficar alta e brincar com a cara do marido, com suas esquisitices.
Antônia ensinava Esteban que para dançar salsa era preciso soltar os quadris, e ele era muito duro. Ele carregava Gómez no sobrenome, mas Dousseau falava mais alto. Esteban Gómez Dousseau. A salsa nunca foi com a cara dele e ele nunca fora com a cara da salsa. Preferia vinhos, como seu pai.
 
     Cogumelos, berinjelas recheadas com espinafre, abóbora assada e uma bela salada de tomates-cereja com alface. A mesa estava quase pronta. Garfo a direita do prato e faca a esquerda. Ajeita o segundo prato. Sim, há dois pratos na mesa, um de frente para o outro, milimetricamente alinhados. A cesta com frutas artificiais dá lugar a um vaso com lírios.
A campainha toca. Uma, duas vezes.
Esteban observa através do olho mágico. Um cara alto, loiro, esguio, camisa social preta e sapatos marrons o espera do outro lado da porta.
Esteban não atende. Volta, dá uma olhada no cabelo no espelho da sala de jantar. Olha para a mesa, percebe que o vaso de lírios não está  exatamente no centro. Ajeita o objeto. Pronto.
Atende a porta, com um sorriso largo, uma felicidade quase incontrolável.
O homem sorri e dá um abraço no anfitrião. Os dois entram.
 
       Rubens trabalha há seis anos no Centro de Pesquisas Arqueológicas na universidade que Esteban é professor. Amigos de colegial, ambos formaram-se em historia. Decidiram juntos o curso que fariam, contrariando a opinião de familiares e amigos próximos que os aconselhavam a seguir carreira jurídica. Ou engenharia. Engenheiro sim ganha muito dinheiro, é uma profissão de futuro. O mundo precisa de engenheiros para avançar. Quem precisa de historiador? Ou professor de historia? Ou mesmo arqueólogo? Quem vive de passado é museu, precisamos olhar pra frente, parar de sonhar com besteira. Esteban e Rubens morreriam de fome.
 
       Rubens elogia pela milésima vez o gosto de Esteban por arte. Rubens analisa de perto o quadro do nascimento de vênus, comenta sobre o estereotipo físico das mulheres do século quinze. Esteban concorda, enquanto serve ambos os pratos. Os dois sentam-se à mesa.
Falam sobre queijos, aquecimento global, o Triangulo das Bermudas, o comunismo, Nelson Mandela, Itália, o homem vitruviano. As berinjelas estão muito boas, e a mesa combinou muito bem com os lírios. Ambos terminam de comer.
Rubens se retira da mesa e vai em direção ao sofá. Se joga no móvel como se ele e o objeto fossem velhos conhecidos. Esteban acompanha o colega mas para no meio do caminho. Lembrou de um CD que ganhou de Antônia quando completaram dois anos de namoro. Que musicas insuportáveis. Guardava o CD dentro do ultimo livro da seção da letra S da sua estante, e só se atrevera a ouvi-lo na companhia de sua esposa quando ela insistia muito.
A musica começa a tocar. Rubens está sentado relaxadamente no sofá, ainda elogiando o jantar. Esteban puxa o amigo pelo braço, num convite forçado  para a dança.
Começam a dançar, juntos. Pés no mesmo ritmo, quadris remexendo harmoniosamente.
Parece que ambos foram feitos para a salsa.
 
       Depois de algumas horas entre danças, risadas e memórias da adolescência, os rapazes sobem para o quarto dos donos da casa, como fazem todas as sextas-feiras, quando Antonia sai para o happy hour com as amigas.
Já são quase onze horas, Antônia deve estar chegando. Dificilmente ela retorna após as onze horas. Não fica bem mulher casada voltar bêbada para casa, sozinha, após as onze horas.
Rubens vai embora. Despedem-se afetuosamente.
 
      Esteban retira a mesa, lava os pratos, joga os lírios fora. Resgata a cesta de frutas artificiais de dentro da dispensa. Cuidadosamente devolve à mesa de jantar o seu layout original.
Guarda o CD que ganhara da esposa no mesmo lugar. Letra S. Ultimo livro.
Tudo volta ao normal.
 
      Antônia chega em casa, mas tem dificuldade para abrir a porta. Depois de algumas cervejas e duas - ou talvez três? - doses de tequila a gente começa a ficar meio fora si. Acontece.
As luzes estão apagadas. No radio, Mozart. Piano concerto numero 21.
 
 
Esteban parece ter adormecido no sofá. Teve um dia cheio.
 
 
 
 
 
 

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Ciumegoista

      Ciúme é algo bonito quando observado com certa distância. Ciúme quando nos persegue vira algo dos infernos, uma supressão da nossa liberdade e um grito de insegurança. Ciúme quando acompanhado de egoísmo costuma ser fatal: mata aos poucos, lentamente, todo e qualquer relacionamento.
     Possuo inúmeros, incontáveis defeitos. Entre eles está  o ciúme egoísta que não permite dividir aqueles que amo. Não aceito a ideia de que meus amigos possuem outros amigos. Não aguento a ideia de que, nesse momento, estou aqui, ouvindo Maria Gadú, sozinha nesse quarto-cozinha, enquanto provavelmente meus amigos jogam conversa fora e saboreiam comida brasileira.
Não suporto saber que nos churrascos de domingo não estou lá pra ajudar minha mãe a fazer a maionese, ou  lamber a panela com o chocolate que ela fez para a torta de bolacha, mas minhas irmãs sim.
       Dói, uma dor fina e continua, como um espinho cravado no dedo, imaginar que a vida segue sem a minha presença. O sol continua nascendo por volta das seis e se pondo após as cinco de tarde. É inverno no Brasil, e meus cachorros brincam no tapete da sala como se nada estivesse fora do lugar. Minha mãe continua preparando o chimarrão das oito horas. Meu pai está viajando.
Não falo com as minhas irmãs faz um bocado de tempo, e está tudo bem. Cada uma no seu caos.
Não bastasse essa obsessão em ser onipresente, tenho ciúme de quem escreve, de quem canta, de quem dança, de quem tem covinhas quando sorri. Os Deuses me deram essas características e elas são minhas. Não faço nenhuma dessas coisas com primor, que fique claro; mas outra fêmea no meu circulo de amizades com esses predicados é  ameaçador: dá uma certa sensação de impotência, não sei explicar.
       Gosto de ser única, de ser lembrada, de estar presente. Se não fisicamente, em pensamento. Quero ser aquele sopro leve confundido como a brisa que anuncia a chegada do inverno. Quero ser traduzida em canção, quero provocar arrepios em que me ouve.
Esse ciúme egoísta é infantil, eu sei. Tento escondê-lo no fundo da caixinha que eu guardo no meu porão interno, mas às vezes nosso porão precisa de uma faxina, senão morremos sufocados por sentimentos velhos e inúteis. E é aí então que meu ciúme-egoísta dá o ar da graça.
      Estou tentando lidar com isso da melhor forma possível, tentando aceitar que eu preciso ser menos (bem menos) ególatra, afinal, o mundo não gira em torno dos meus caprichos.
 
      Às vezes acho que sei lidar. Às vezes me distancio de mim mesma, observo minha obsessão, meu egoísmo fatal. Às vezes apenas brinco com as situações, engulo em seco, e bola pra frente. Será?
 
      A vida segue, sim, seu curso normal. Minha família vive. Meus amigos vivem. Amigos de amigos saem com outros amigos, que por coincidência são meus amigos também. Meus cachorros talvez sintam meu cheiro próximo ao meu quarto, e lembrem um pouquinho de mim; ou talvez minha mãe tenha lavado minhas roupas, meus lençóis, meus cobertores, e o que reste na casa seja apenas um agradável aroma de amaciante. Tanto faz.
 
"Não valem dramáticos efeitos
Mas o que está depois
Não vamos fuçar nossos defeitos
Cravar sobre o peito as unhas do rancor
Lutemos mas só pelo direito
Ao nosso estranho amor"
 
Maria Gadú, Caetaneando nos meus ouvidos, me faz colocar um ponto final nesse autoflagelamento: parei de fuçar os meus defeitos.
 
Vou ligar pra minha mãe e perguntar logo da falta que estou fazendo.