segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Concerto numero 21

        Chegou em casa do trabalho, colocou as compras em cima da mesa, tirou os sapatos. Não havia ninguém em casa, e o único som que se ouvia era o canto dos pássaros de estimação: um papagaio e um canário belga. Sentou na poltrona. Respirou fundo e fechou os olhos, parecia que estava tentando achar conforto dentro dos seus pensamentos. Dia cheio, transito, verão intenso, correria. Esfregou as têmporas numa tentativa frustrada de aliviar a dor de cabeça tensional. Ficou assim por uns dois minutos, mas logo lembrou-se da sua válvula de escape: musica clássica.

       Esteban era um homem de meia idade, cabelos grisalhos, lisos. Filho de pai francês e mãe cubana, puxou os traços  paternos. Alto, caucasiano, sorriso gentil. Obcecado por arte, possui algumas réplicas  fiéis  de quadros de Boticelli e Rafael em sua sala. Seus CDs também entregam o seu gosto por musica clássica: costumava dormir ouvindo Mozart, na sala, a contragosto da mulher, que o esperava na cama. Piano concerto número  21. Ela odiava. Odiava porque sabia de cor cada nota dessa faixa do CD. Odiava porque era a sinfonia da sua solidão algumas noites na semana, quando o cansaço de Esteban era extremo e o impedia de subir as escadas em direção ao quarto do casal, tomar um banho e se deitar ao lado da mulher.
 
       Hoje o jantar seria feito por ele, que há três anos tornou-se vegetariano após assistir a um documentário sobre abatedouros e saúde bovina. Sua esposa estaria bebendo com algumas amigas, como faz religiosamente toda sexta-feira após o trabalho. Ela costuma chamar de happy hour; ele retruca dizendo que mulher não sabe fazer happy hour, e que homem sim, homem fala de futebol, xinga o chefe, comenta sobre os seios da garçonete. Mulher quando se junta reclama do marido, dos filhos, do preço do tomate, das rugas da fulana - que geralmente faz parte do grupo do happy hour, mas não pôde estar presente. Pobre fulana. Happy hour significa hora feliz em tradução literal, e mulher só sabe reclamar. Onde esta a felicidade ai? A hora feliz estava em casa, onde Esteban, sozinho, ouvia seus CDs enquanto cortava cebolas.
 
       Antônia casou-se com Esteban quando tinha vinte e seis anos. Filha de pai empresário e mãe fotógrafa, sempre foi muito mimada com presentes caros, viagens e tudo o que uma garota pode querer. Alguns dizem que os dois só deram certo porque Antônia tinha uma vivacidade adolescente, um espírito de aventura ausente em Esteban, que sempre planejou cada segundo da sua vida, que contava cada centavo antes de comprar o pão, que nunca ia dormir após as vinte e duas horas, que mantinha sua estante de livros organizada por assunto, ordem alfabética e ano de publicação. Outros dizem que foi o jeito que Esteban ri quando fica nervoso, mas que mesmo assim continua com os olhos fixos na pessoa, como se fosse uma tentativa de negar o nervosismo evidente. Era seu charme.
Antônia não era uma mulher de muito conhecimento artístico ou mesmo cientifico. Seu livro de cabeceira era uma bíblia, a qual nunca foi lida, mas que combinava com a mesinha de madeira do século dezoito, que ganhou do Marido quando se mudaram para uma casa maior.
 
       De certa forma, um completava o outro. Esteban ensinava Antônia a degustar bons vinhos, ensinava que não pode beber direto, existe um protocolo a ser seguido. Primeiro vem a análise visual, depois a análise olfativa e ai sim, por último, a análise gustativa. É quase um namoro. Antônia achava besteira, gostava mesmo era de ficar alta e brincar com a cara do marido, com suas esquisitices.
Antônia ensinava Esteban que para dançar salsa era preciso soltar os quadris, e ele era muito duro. Ele carregava Gómez no sobrenome, mas Dousseau falava mais alto. Esteban Gómez Dousseau. A salsa nunca foi com a cara dele e ele nunca fora com a cara da salsa. Preferia vinhos, como seu pai.
 
     Cogumelos, berinjelas recheadas com espinafre, abóbora assada e uma bela salada de tomates-cereja com alface. A mesa estava quase pronta. Garfo a direita do prato e faca a esquerda. Ajeita o segundo prato. Sim, há dois pratos na mesa, um de frente para o outro, milimetricamente alinhados. A cesta com frutas artificiais dá lugar a um vaso com lírios.
A campainha toca. Uma, duas vezes.
Esteban observa através do olho mágico. Um cara alto, loiro, esguio, camisa social preta e sapatos marrons o espera do outro lado da porta.
Esteban não atende. Volta, dá uma olhada no cabelo no espelho da sala de jantar. Olha para a mesa, percebe que o vaso de lírios não está  exatamente no centro. Ajeita o objeto. Pronto.
Atende a porta, com um sorriso largo, uma felicidade quase incontrolável.
O homem sorri e dá um abraço no anfitrião. Os dois entram.
 
       Rubens trabalha há seis anos no Centro de Pesquisas Arqueológicas na universidade que Esteban é professor. Amigos de colegial, ambos formaram-se em historia. Decidiram juntos o curso que fariam, contrariando a opinião de familiares e amigos próximos que os aconselhavam a seguir carreira jurídica. Ou engenharia. Engenheiro sim ganha muito dinheiro, é uma profissão de futuro. O mundo precisa de engenheiros para avançar. Quem precisa de historiador? Ou professor de historia? Ou mesmo arqueólogo? Quem vive de passado é museu, precisamos olhar pra frente, parar de sonhar com besteira. Esteban e Rubens morreriam de fome.
 
       Rubens elogia pela milésima vez o gosto de Esteban por arte. Rubens analisa de perto o quadro do nascimento de vênus, comenta sobre o estereotipo físico das mulheres do século quinze. Esteban concorda, enquanto serve ambos os pratos. Os dois sentam-se à mesa.
Falam sobre queijos, aquecimento global, o Triangulo das Bermudas, o comunismo, Nelson Mandela, Itália, o homem vitruviano. As berinjelas estão muito boas, e a mesa combinou muito bem com os lírios. Ambos terminam de comer.
Rubens se retira da mesa e vai em direção ao sofá. Se joga no móvel como se ele e o objeto fossem velhos conhecidos. Esteban acompanha o colega mas para no meio do caminho. Lembrou de um CD que ganhou de Antônia quando completaram dois anos de namoro. Que musicas insuportáveis. Guardava o CD dentro do ultimo livro da seção da letra S da sua estante, e só se atrevera a ouvi-lo na companhia de sua esposa quando ela insistia muito.
A musica começa a tocar. Rubens está sentado relaxadamente no sofá, ainda elogiando o jantar. Esteban puxa o amigo pelo braço, num convite forçado  para a dança.
Começam a dançar, juntos. Pés no mesmo ritmo, quadris remexendo harmoniosamente.
Parece que ambos foram feitos para a salsa.
 
       Depois de algumas horas entre danças, risadas e memórias da adolescência, os rapazes sobem para o quarto dos donos da casa, como fazem todas as sextas-feiras, quando Antonia sai para o happy hour com as amigas.
Já são quase onze horas, Antônia deve estar chegando. Dificilmente ela retorna após as onze horas. Não fica bem mulher casada voltar bêbada para casa, sozinha, após as onze horas.
Rubens vai embora. Despedem-se afetuosamente.
 
      Esteban retira a mesa, lava os pratos, joga os lírios fora. Resgata a cesta de frutas artificiais de dentro da dispensa. Cuidadosamente devolve à mesa de jantar o seu layout original.
Guarda o CD que ganhara da esposa no mesmo lugar. Letra S. Ultimo livro.
Tudo volta ao normal.
 
      Antônia chega em casa, mas tem dificuldade para abrir a porta. Depois de algumas cervejas e duas - ou talvez três? - doses de tequila a gente começa a ficar meio fora si. Acontece.
As luzes estão apagadas. No radio, Mozart. Piano concerto numero 21.
 
 
Esteban parece ter adormecido no sofá. Teve um dia cheio.
 
 
 
 
 
 

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