terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Pudim

   
     O vento fazia um barulho ensurdecedor lá fora, e o som dos galhos das árvores balançando era intimidador. Dentro, a lareira acesa, uma taça de vinho e um frio interno. Não era possível descrever o quão gelado o coração estava, somado ao vazio. O vento entrava pelos poros e orifícios e fazia uma dança alucinante dentro de si. Por vezes dava para ouvir o assobiar do vento dentro do seu peito, surdo, triste, aflito. Ele saíra por aquela porta sem dar explicações, talvez em busca de mais uma garrafa de algo que pudesse embriagar ambos e calar qualquer questionamento sobre a vida miserável que tinham vivido até então. A porta bateu e fez tremer cada centímetro da casa. Até o quadro na parede do casal feliz com a cara suja de sorvete no parque de diversões ficou meio torto – tal como os últimos meses de convivência: uma vaga lembrança do que foi um dia. Frágil e desgastado a ponto de qualquer vento mais forte desestabilizar.
     Ela sabia que não teria volta. Ela sabia porque havia preparado um jantar romântico mas esqueceu da salada de champignon – coisa que ele adora. Esqueceu mas não fez questão de voltar no supermercado e comprar. Em épocas mais prósperas, isso não aconteceria: voltaria correndo para buscar o complemento da salada e ainda sairia com ingredientes para um pudim. Mas ela não voltou: esqueceu os champignons e nem fez questão de sobremesa. Saiu de lá abraçada numa garrafa do seu vinho preferido pouco se importando com a preferência dele: vinho branco. Sim, havia acabado, o jantar estava meia boca e não havia sobremesa.
     Estava frio, ela estava de cabelo molhado, roupão e meias até o joelho, sentada no tapete felpudo em frente à lareira. Não vestiu o usual vestido preto nem passou batom vermelho. Saiu do banho como se estivesse pronta para dormir. Havia acabado.
     Havia acabado porque enquanto ela cortava cebolas ele trocava mensagens com alguém. Logo ele, que sempre foi tão prestativo, que sempre se divertia tanto com ela tentando descascar batatas ou que ficava atrás limpando a bagunça que ela fazia na cozinha. Havia acabado porque ela sabia que aquele jantar ficaria uma droga.
     Uma ou duas perguntas de como foi o dia. O dia foi bom - dizia ele sem tirar os olhos do celular -mas eu estava louco para chegar em casa e tirar esses sapatos, eu não deveria ter saído com esses sapatos novos, apertam demais, acho que vou usá-los apenas em formaturas, casamentos ou funerais. O dia dela tinha sido triste, porque ela sabia que havia acabado, mesmo sugerindo um jantarzinho regado à vinho para a noite. Você sabe - dizia ela - peguei trânsito, fiquei horas na estrada, mas graças a Deus cheguei em casa, vem, vamos comer, a comida está pronta.
   Silêncio. Não fosse o barulho do vento lá fora e das mandíbulas mastigando aquela refeição monocromática e sem graça, não se ouviria nenhum ruído. Ambos perdidos em seus próprios pensamentos, talvez pensando em como diriam adeus. Talvez ele tirasse debaixo da cama a mala já pronta, daria um beijo na bochecha e sumiria de vez. Ele faria isso, ela não tinha coragem. Ela esperaria até o último suspiro dessa relação desgastada, afinal o comodismo não a permitiria abandonar dessa forma tantos anos de convivência. Tinha um apego fora do comum pelas coisas. Taurina, sempre discursava sobre a influência do signo justificando sua teimosia e ao apego à rotina.
    Havia acabado não por falta de amor, mas por falta de empenho. Havia acabado porque ela estava sentada à mesa, desleixada, não tinha salada de champignon, não tinha vinho branco, não tinha sobremesa, e ele estava descalço. Havia acabado porque ele não moveu um dedo sequer para pôr os pratos e os talheres, e tudo o que mais queria para depois seria cair na cama e dormir. Havia acabado porque ela estava de roupão. Havia acabado porque não pareciam mais se interessar, de fato, pela rotina do outro. Tudo era chato. Era um martírio os jogos de quarta-feira e as TPM’s intermináveis. Viver havia se tornado uma tortura.
Sempre fomos tão parceiros, ela pensava, mudei de cidade para ficarmos mais próximos, renunciei a ótimas propostas de emprego e ainda não tenho filhos. Sou como uma árvore seca, minha vó diria. Talvez ele tenha amante. Talvez eu devesse ter um amante. Talvez a nossa vida fosse melhor se eu não fosse tão geniosa. Ou se não mexesse nos bolsos dele quando entra para o banho. Eu que antes o procurava demais, agora o procuro de menos. Perdi o interesse por nós dois. Talvez fosse melhor acabar com isso logo, tirar logo o curativo de uma vez para não ficar machucando a ferida ainda não cicatrizada. Talvez hoje fosse o dia. Talvez, talvez, talvez.


Lá estava ela, sentada no chão, tentando juntar os pedaços de si mesma, pouco importando-se onde ele estaria a uma hora dessas.  Estava frio dentro e fora da casa. Dentro e fora de si mesma. Terminaram de jantar e ele saíra apressado, sem dar muitas explicações, após longos minutos de silêncio naquela mesa. Ainda se amavam, mas havia acabado.
Estava decidida a dar um ponto final. Sem chorar, se jogar no chão, borrar a maquiagem. Fina, polida, sensata, diria adeus. Ela abdicaria da casa, levaria apenas o carro e o cachorro. Talvez voltasse pra casa da mãe, mas só pela manhã – dormiria num hotel qualquer.


Pouco tempo depois ele retorna, e a encontra terminando de fechar a última das três malas. Saíra para comprar vinho branco e sobremesa. Pudim.






sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Please come to Brazil


Oi linda, quanto tempo! Tava fuxicando a tua vida nas redes sociais e vi que tu não tá mais namorando. Confere? Mas isso é normal, não fica triste. Aproveita que tu é nova e vai atrás de gringo pra conseguir o Greencard. Morar aí pra se
mpre, já pensou?
Mas e o frio? Muito frio aí? Aqui tá o deserto do Saara, o mármore do inferno. Se não fosse o sacolé de fruta eu tava lascado. Bom que agora o trem é novo. Tu viu os novos trens? Agora eles têm ar-condicionado e minha avó não passa mais mal da pressão e aquela rodela de suor no sovaco na camisa social indo pra formatura no Bourbon Country também não existe mais. Tá uma beleza. Bom aqui no calor é ir pra Redenção, reunir os amigos. Aí tem muito parque? Tem? Bacana, bacana. Achei que aí só tinha neve e aquelas casas sem portão. Aquelas casas com sótan. Sótão. É sótan ou sotão? Essas casinhas com chaminé lembram a casa da minha tia-avó em Dois Irmãos. Por falar em chaminé, como foi o natal aí? Deve ter sido massa. Aqui teve rojão, muito rojão, rojão pra cacete. Os cachorros se esconderam no banheiro e um deles teve o tímpano estourado. E eu lá sabia que cachorro tinha tímpano? Levei no veterinário, teve que operar ás pressas. Aí tem cachorro? Digo, cachorro de rua? Aí parece que não tem pobreza, mendigo. Nem cachorro de rua. Nem rojão. Povo educado não faz barulho. Americano é muito educado, né não?
E como tá sendo morar sozinha? Aprendeu a cozinhar e a limpar? Importante mulher saber fazer essas coisas, senão não casa, hehe. Ah, vi umas fotos tuas em Nova Iorque. Chique, hein? Quem diria que aquela menina que pulava da cama às seis da manhã pra pegar no batente um dia pisaria na Times Square. Mas a Dilma ajudou, né não? Apesar disso, sou anti-petista. Votei no Aécio, fiz campanha pro Aécio e fiz toda a minha família votar no Aécio. Chega de corrupção, né não? Calma, calma, não precisa se revoltar. Parei. Não acredito que tu ia votar Luciana Genro. Sei que é brincadeira, sinto falta do teu senso de humor.
Mudando de assunto, uma amiga nossa em comum, aquela que morava em Porto Alegre com o namorado maconheiro, sabe? Ela me indicou o teu blog, apesar de não ser muito a praia dela. Ela curte esses livros adolescentes, essas histórias crepusculescas, sabe? Mas ela até que curtiu. Eu também curti, mas tu não é escritora né? Escritora escreve tipo romance, não me vem nenhum na cabeça agora, eu não sou muito de ler, mas tu sabe o que eu tô querendo dizer. Não tenho acompanhado muito, a vida anda muito corrida. Acho que li o último texto em novembro, mas também não lembro o nome. Por falar em novembro, como foi a Black Friday por aí? Comprou muita coisa? Vai me trazer o quê de presente? Hehe. Eu não comprei nada porque aqui no Brasil é tudo pela metade do dobro + taxas. Até fiquei meio assim, te vi online, ia te pedir um Iphone 6 e um Playstation 4. Esse Iphone dizem que dobra, né? Parece meio defeituoso, mas ainda assim é melhor que o 5. Te pago aqui. Ou melhor, te pago agora, me passa a tua conta. Acabou teu dinheiro? Como assim? Só ganha isso de bolsa? Credo. Por isso não votei na Dilma. E nem no PT. Talvez se a Dilma fosse tucana ou se o PT não fosse comunista. Mas essa grana é um absurdo. Não tá passando fome aí, né? Mas sem problemas, não faz mal, me viro. Tem um primo meu que tá no Texas, vou pedir pra ele. Na verdade ele tá no México. Mas talvez esteja na Califórnia, tô só acompanhando pelas fotos que ele posta. Será que ele ganha mais que vocês aí? Hehe.
 Mas me conta, volta quando? Agosto? Beleza, a gente vai se falando. Ou não. Como te disse, ando muito ocupado. Aliás, tô indo agora pegar o trem pra rodoviária. Vou pra Tramandaí descansar dessa loucura que é Porto Alegre. Tô só por uma Polar gelada. Aí não tem Polar, né? Hehe. Posto uma foto e te marco. Poderia ser com meu Iphone 6, porque a câmera do 5 já tá meio ruim, hehe. Será que vai dar problema com teu namorado? Putz, esqueci que tu terminou. Sorry. Vou indo lá. Se cuida. E não vamos perder o contato! Happy new wear. Year. É wear ou year?



sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Olhos amendoados

Os olhos amendoados que ele não parava de elogiar, na verdade não eram amendoados. Nunca foram. Olhos amendoados têm o canto externo levemente levantado, lembrando uma amêndoa.
Aqueles olhos eram, na verdade, olhos levemente puxados, sonolentos, que ficam ainda menores na presença de um sorriso, quando a face toda se comprime, esmagando-os. Olhos desse tipo não são simétricos e nem caem bem com qualquer maquiagem: a pálpebra móvel costuma ser pequena e pouco receptiva a delineadores e sombras escuras. Chorar, então, é um veneno: os globos oculares dão lugar a dois pequenos rasgos na parte superior da face. Ficam vermelhos, se escondem. Definitivamente, não eram olhos amendoados.
Olhos amendoados, segundo estudiosos de beleza e estética, são considerados os mais bonitos, pois o formato favorece o rosto feminino. Olhos puxados estão sempre com a aparência de inchados, deve-se tomar cuidado ao colorir demais ou colorir de menos e recomenda-se carregar sempre um corretivo na bolsa. Asiáticas enchem os consultórios de cirurgia plástica para ficarem um pouco parecidas com as ocidentais, passando pelo constrangimento de não serem reconhecidas no aeroporto quando comparadas com a antiga foto do passaporte. Mangás e Animes tem olhos gigantescos, e muitos atribuem isso ao fato de os asiáticos renegarem seu padrão genético; outros contrariam essa tese e explicam que os olhos avantajados servem para expressar de forma mais clara as emoções e sentimentos dos personagens. Olhos puxados não estampam revistas. Olhos amendoados sim.
A primeira vez que ouviu que ele adorava seus olhos amendoados, se decepcionou: "ou ele não entende nada de olhos, ou não entende nada de mim". Mas era tão bacana esse "me engana que eu gosto", esse galanteio despretensioso, essa desinformação encantadora.
Elogiar os olhos na fila do mercado, debaixo de uma marquise em dia de chuva ou no meio de uma festa é algo notável e digno de onomatopeias apaixonadas. 

Ao invés de corrigir esse pequeno deslize, decidiu entrar no jogo:
- "Você tem olhos lindos... eles são amendoados..."
- "Obrigada! são seus olhos"

E eram. Ela, então, calava-se, tímida, vermelha, com seus pequenos olhos quase fechados, após esboçar um sorriso de agradecimento. Por dentro sentia um pouquinho de inveja e lamentava a injustiça divina, desejando para si aqueles olhos amendoados, que ele não fazia a menor ideia que possuía.



domingo, 14 de dezembro de 2014

Nossa idade não existe

Tenho quase vinte e três, apesar de ainda sentir que tenho vinte. Dezoito, talvez. Não fosse o fato de eu estar na segunda metade da faculdade de engenharia, poderia sugerir que as vezes tenho dez. Faço birra quando algo me incomoda e não costumo ser muito tolerante. Quando estou com medo, me sinto com cinco. Coleciono bichinhos de pelúcia, amo os filmes do Walt Disney e tenho varias peças de roupa do Mickey. Todas as noites durmo vestida de piu-piu, num revival de emoções da imortal pré-escola, época mais feliz da minha vida.
Quando estou carente e deito no colo da minha mãe, me sinto com dois.
Quando vou ao supermercado sozinha fazer compras para a casa, me sinto com trinta. Decidir entre o sabão que limpa melhor e o que tem o perfume melhor é realmente uma tarefa árdua.
Quando ganhava um elogio do chefe, me sentia com quarenta e poucos, vinte de experiência, bem sucedida e realizada profissionalmente. Até o momento em que eu me sentia perdida. Parecia que tinha dezoito recém feitos, há poucos dias no mundo corporativo como uma estagiaria bobinha, inexperiente e ávida por mostrar um talento ainda bruto.
Quando converso com minha mãe, me sinto com cinquenta. Conversamos como duas mulheres adultas, muito além de uma esperada relação maternal e confortável.
Quando o barulho está alto, me sinto com sessenta - ranzinza e infeliz. Quando saio da esteira, ofegante, sedentária e com dores no tornozelo, me sinto com setenta e poucos.
Quando deixo de amar, me sinto no leito de morte.
É uma instigante luta diária conviver com essa variação de idades, esses conflitos internos, essa inconstância de maturidade. Tenho amigos de dezessete e de quarenta. Muitas vezes aconselho os de quarenta e sou aconselhada pelos de dezessete. E são nesses momentos que percebo que eu sou várias, que todos somos vários. Somos a menina que sonha em ser grande, rebocando a cara com o batom ingenuamente roubado da mãe. Somos a cumplicidade entre dois amigos que se entreolham e riem com a mão na boca durante o discurso chato de fim de ano do dono da empresa. Somos o cara de meia idade bem sucedido que chega em casa, deixa o paletó em cima da cadeira e coloca seu pijama do Batman, pronto pra dormir e descansar as suas inseguranças juvenis.