O vento fazia um barulho ensurdecedor lá fora, e o som dos galhos das árvores balançando era intimidador. Dentro, a lareira acesa, uma taça de vinho e um frio interno. Não era possível descrever o quão gelado o coração estava, somado ao vazio. O vento entrava pelos poros e orifícios e fazia uma dança alucinante dentro de si. Por vezes dava para ouvir o assobiar do vento dentro do seu peito, surdo, triste, aflito. Ele saíra por aquela porta sem dar explicações, talvez em busca de mais uma garrafa de algo que pudesse embriagar ambos e calar qualquer questionamento sobre a vida miserável que tinham vivido até então. A porta bateu e fez tremer cada centímetro da casa. Até o quadro na parede do casal feliz com a cara suja de sorvete no parque de diversões ficou meio torto – tal como os últimos meses de convivência: uma vaga lembrança do que foi um dia. Frágil e desgastado a ponto de qualquer vento mais forte desestabilizar.
Ela sabia que não teria volta.
Ela sabia porque havia preparado um jantar romântico mas esqueceu da salada de
champignon – coisa que ele adora. Esqueceu mas não fez questão de voltar no
supermercado e comprar. Em épocas mais prósperas, isso não aconteceria:
voltaria correndo para buscar o complemento da salada e ainda sairia com
ingredientes para um pudim. Mas ela não voltou: esqueceu os champignons e nem
fez questão de sobremesa. Saiu de lá abraçada numa garrafa do seu vinho
preferido pouco se importando com a preferência dele: vinho branco. Sim, havia
acabado, o jantar estava meia boca e não havia sobremesa.
Estava frio, ela estava de cabelo
molhado, roupão e meias até o joelho, sentada no tapete felpudo em frente à
lareira. Não vestiu o usual vestido preto nem passou batom vermelho. Saiu do
banho como se estivesse pronta para dormir. Havia acabado.
Havia acabado porque enquanto ela
cortava cebolas ele trocava mensagens com alguém. Logo ele, que sempre foi tão
prestativo, que sempre se divertia tanto com ela tentando descascar batatas ou
que ficava atrás limpando a bagunça que ela fazia na cozinha. Havia acabado
porque ela sabia que aquele jantar ficaria uma droga.
Uma ou duas perguntas de como foi
o dia. O dia foi bom - dizia ele sem tirar os olhos do celular -mas eu estava
louco para chegar em casa e tirar esses sapatos, eu não deveria ter saído com
esses sapatos novos, apertam demais, acho que vou usá-los apenas em formaturas,
casamentos ou funerais. O dia dela tinha sido triste,
porque ela sabia que havia acabado, mesmo sugerindo um jantarzinho regado à
vinho para a noite. Você sabe - dizia ela - peguei trânsito, fiquei horas na estrada, mas
graças a Deus cheguei em casa, vem, vamos comer, a comida está pronta.
Silêncio. Não fosse o barulho do
vento lá fora e das mandíbulas mastigando aquela refeição monocromática e sem
graça, não se ouviria nenhum ruído. Ambos perdidos em seus próprios
pensamentos, talvez pensando em como diriam adeus. Talvez ele tirasse debaixo
da cama a mala já pronta, daria um beijo na bochecha e sumiria de vez. Ele
faria isso, ela não tinha coragem. Ela esperaria até o último suspiro dessa
relação desgastada, afinal o comodismo não a permitiria abandonar dessa forma
tantos anos de convivência. Tinha um apego fora do comum pelas coisas. Taurina,
sempre discursava sobre a influência do signo justificando sua teimosia e ao
apego à rotina.
Havia acabado não por falta de
amor, mas por falta de empenho. Havia acabado porque ela estava sentada à mesa,
desleixada, não tinha salada de champignon, não tinha vinho branco, não tinha
sobremesa, e ele estava descalço. Havia acabado porque ele não moveu um dedo
sequer para pôr os pratos e os talheres, e tudo o que mais queria para depois
seria cair na cama e dormir. Havia acabado porque ela estava de roupão. Havia
acabado porque não pareciam mais se interessar, de fato, pela rotina do outro.
Tudo era chato. Era um martírio os jogos de quarta-feira e as TPM’s
intermináveis. Viver havia se tornado uma tortura.
Sempre fomos tão parceiros, ela
pensava, mudei de cidade para ficarmos mais próximos, renunciei a ótimas
propostas de emprego e ainda não tenho filhos. Sou como uma árvore seca, minha
vó diria. Talvez ele tenha amante. Talvez eu devesse ter um amante. Talvez a
nossa vida fosse melhor se eu não fosse tão geniosa. Ou se não mexesse nos
bolsos dele quando entra para o banho. Eu que antes o procurava demais, agora o
procuro de menos. Perdi o interesse por nós dois. Talvez fosse melhor acabar
com isso logo, tirar logo o curativo de uma vez para não ficar machucando a
ferida ainda não cicatrizada. Talvez hoje fosse o dia. Talvez, talvez, talvez.
Lá estava ela, sentada no chão,
tentando juntar os pedaços de si mesma, pouco importando-se onde ele estaria a
uma hora dessas. Estava frio dentro e
fora da casa. Dentro e fora de si mesma. Terminaram de jantar e ele saíra
apressado, sem dar muitas explicações, após longos minutos de silêncio naquela
mesa. Ainda se amavam, mas havia acabado.
Estava decidida a dar um ponto
final. Sem chorar, se jogar no chão, borrar a maquiagem. Fina, polida, sensata,
diria adeus. Ela abdicaria da casa, levaria apenas o carro e o cachorro. Talvez
voltasse pra casa da mãe, mas só pela manhã – dormiria num hotel qualquer.
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