terça-feira, 16 de setembro de 2014

Dona Catarina

Tem gente que visita os avós só em datas comemorativas. Ou quando sente falta daquele bolo de fubá que, apesar de queimar um pouquinho embaixo, é muito mais gostoso do que o da mãe. Tem sabor de cumplicidade, de permissividade, de uma liberdade que a gente não tem em casa. Tem gente que visita os avós quando precisa de uma graninha. Gente mais velha ganha aposentadoria, não tem muitas ambições na vida e sempre guarda alguma coisa debaixo do colchão. Tem gente que visita os avós por pura insistência dos pais. Você precisa ir lá, menino, não vê sua avó desde que ela voltou do hospital. Não quero ir, mãe. Não gosto de gente velha. Velho só fala em doença ou conta histórias que não me interesso em saber. Isso quando não esquece parte da história e tudo fica sem pé nem cabeça.

Perdi meu avô quando eu tinha uns sete anos. Ele já estava caducando, com vários problemas de locomoção e diabetes. Partiu sereno, deixou de sofrer. Minha avó morreu um ano depois, por complicações no coração. Acredito que a depressão teve sua contribuição na morte prematura da Dona Catarina. Sessenta e quatro anos sofridos, apesar de bem vividos.

Nossa relação era engraçada; não era aquela relação de avó e netinha que a gente vê nas historias bonitinhas. Minha avó me tratava como uma pequena mulher, porque assim eu era: tinha uma inteligência e raciocínio acima da media, definitivamente muito diferente das crianças da minha idade. Chegava até a ser meio fria a nossa relação. Já com minha prima era diferente: chegávamos na casa da vó, minha prima recebia mil e um beijos e abraços quase desesperados. Ela era a pretinha da vó: pequena, frágil, bonitinha. Eu recebia um beijo singelo. Eu era a Catarina jovem, mas não queria aquele rótulo. Dona Catarina era forte demais, determinada demais, decidida demais, inteligente demais. Era uma responsabilidade enorme esse titulo, ainda mais para uma criança que queria apenas amor de vó. Só.
Aquilo me deixava meio triste, mas mesmo assim amava muito aquela mulher.

Minha avó ficou muito solitária depois que meu avô morreu. Por isso, eu ia todas as noites na casa dela fazer companhia. Assistíamos novela, falávamos sobre horóscopo, sobre o meu sobrinho que estava para nascer. "Será que ele vai ser de escorpião ou de virgem?" "Quem nasce em setembro é virgem, vó. Acho que é. O que a senhora acha?"
Filosofávamos. Como nutrir um amor pueril por uma criança que filosofa sobre quase qualquer coisa? Que devora enciclopédias? Impossível. Eu merecia um tratamento diferenciado. Eu era uma jovem adulta.

Eu ia por conta própria, a despeito da minha mãe, que ficava com ciúmes.
Imaginava como devia ser triste perder o companheiro de tantos anos e viver só numa casa tão grande. Casa essa que já presenciou grandes festas, anúncios de casamentos e de nascimentos; que já foi testemunha de tantas brincadeiras entre eu e minha prima; que já presenciou minha tia fazendo as pegadas do coelhinho da Páscoa na farinha.
Lembro dos nossos almoços. Amava o arroz parabolizado que ela fazia. Os bolinhos de arroz meio queimados. A mesa de frutas no Réveillon.

Sempre tive uma afeição incomum por pessoas mais velhas. Adotava os avós dos outros. Adorava ouvir as historias, os causos, olhar dentro dos olhos. Olhares tristes, olhares saudosos. Me perdia naqueles olhares.
Hoje o casarão da vó está diferente: parece bem menor do que eu via há quinze anos atrás.

Ela se foi e junto dela se foi a frieza para comigo, a personalidade forte, o arroz parabolizado e os bolinhos queimados. Foi-se também a mesa de frutas.
Ela se foi, e com ela minha infância.

Ela se foi, e levou consigo a Páscoa, o Réveillon, o Natal e todas as datas comemorativas.



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